Happy End, de Michael Haneke

Imagens captadas por câmeras de celular abrem e fecham Happy End, de Michael Haneke. Imagens que atendem aos estranhos desejos de uma menina, a inclinação a captar e fazer o mal, ao passo que seus familiares, ao redor, pouco a pouco se deixam ver: o pai que trai a madrasta, a tia que toca os negócios da família, o primo que bebe além da conta, o avô que, cansado de viver, um pouco senil, tenta encontrar alguém para matá-lo.

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A família, enfim, e nem por isso a partir de formas e dramas esperados, em caricatura previsível. O que se sabe, desde o início, é que Haneke não crê em finais felizes – tampouco em desenrolares felizes, ou em qualquer sequência ou instante que tente conferir tranquilidade. Seus seres não são malvados por completo.

O diretor austríaco segue fiel a suas ideias desde que surgiu como nome promissor do cinema, no fim dos anos 80, no início da chamada Trilogia da Frieza. Algumas temas são recorrentes: a família que se destrói de dentro para fora, as crianças que expõem a maldade, a relação das pessoas com as imagens de suas pequenas máquinas.

Antes era o vídeo, agora é a imagem digital. Em O Vídeo de Benny, o adolescente assiste ao sacrifício de um porco e, com a mesma arma, mata uma amiga de classe em sua casa. O ato de crueldade será registrado em vídeo, sob processo analógico, época em que muita gente já empunhava câmeras para registrar o dia a dia com banalidade e frieza.

Para Haneke, o homem moderno é moldado pela relação com essas mesmas imagens, pela naturalização de um espetáculo mórbido que deixa ver novas camadas de quem o produz, não necessariamente o que ele contém. É como se Haneke dissesse: “olhe pelos olhos dos outros, pela reprodução do nada e, ao mesmo tempo, sob a ótica do mal”.

Inevitável, por isso, chegar a Violência Gratuita, no qual as personagens flertam com o público, no qual o próprio cineasta – em sua visão irônica da violência explícita levada ao cinema – deixa que sua obra seja escancaradamente adulterada; ou, claro, chegar a Caché, com seu protagonista atormentado pelas fitas de vídeo que recebe em sua casa.

Sem algo a agarrar, em Happy End o espectador é obrigado a olhar para trás, levado a observar Haneke e uma carreira moldada por grandes obras. Claro que isso não serve àqueles que agora descobrem o cineasta; e, é honesto dizer, todos esses filmes não devem depender necessariamente de um conjunto para sobreviverem.

Nesse sentido, Happy End pode ser considerado um dos piores filmes de Haneke, ainda que distante do desprezível. É às vezes contido demais se comparado a outras obras do autor. É sobre uma família que desmorona sem que deixe ver facilmente, no estranho limite em que a crueldade pode se converter também em algo cômico.

Basta pensar na imagem feita pelo celular da menina, no término, quando os filhos correm ao mar para tentar tirar dali o pai que tenta morrer. Há duas questões em jogo: o patriarca que não consegue satisfazer seu desejo e dar fim à vida e a situação dos filhos, que correm, em gesto engraçado, para retirar do oceano a figura que ainda representa o que eles possuem de mais forte: a suposta solidez do homem velho, a imagem da experiência.

Curioso notar que dois filmes que concorreram à Palma de Ouro em Cannes em 2017 possuem sequências-chave passadas em celebrações, nas quais se detonam os bons modos. Em The Square: A Arte da Discórdia, de Ruben Östlund, uma performance artística em um jantar chique termina em violência; em Happy End, o filho embriagado surge no meio da comemoração do noivado da mãe na companhia de imigrantes negros, como se todos pudessem almoçar sob o mesmo teto.

A imagem cristalina do belo jantar tem efeito curioso. O branco, o brilho, o mar azul ao fundo. Haneke compõe a paisagem dos sonhos logo cortada pela imagem crua do celular, pela mesma menina que empurra o avô rumo ao oceano. Duas gerações da família unem-se em suas necessidades. Enquanto tentam matar ou morrer, chegam a ser engraçadas.

(Idem, Michael Haneke, 2017)

Nota: ★★★☆☆

Veja também:
A família suicida de Michael Haneke

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