A nova modelo tem o que se costuma chamar de “beleza diferente”: ao escolhê-la, o estilista não deixará dúvidas no espectador. A moça – em seu estado fechado, frio, no jeito de quem está sempre descobrindo algo e que custa a pertencer – será “aprovada”. Sua beleza é evidente dentro das regras que esse filme propõe, sobre jogos e dominação.
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Mais que beleza evidente, essa moça, entende o cineasta Paul Thomas Anderson, deverá parecer alguém dominável e, ao contrário, um anjo da morte que flerta com o protagonista, o mesmo estilista, o tempo todo. Em um filme sobre um homem fascinado pela beleza, não exatamente por uma mulher, ela desempenha papel semelhante ao do menino Tadzio de Morte em Veneza, adaptado à tela em 1971 por Luchino Visconti.
O artista cansado, em Trama Fantasma, não consegue deixar de fazer o que sempre fez: vestidos. Em uma viagem pelo campo, Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis) conhece a moça em questão, desajeitada, que tropeça (literalmente) durante os primeiros olhares trocados, situação cujo embaraço revela muito sobre a espontaneidade.
Não há dúvidas: ele deixa-se laçar. Ela também. Interessante notar que da naturalidade do encontro o filme passa ao desespero que a arte carrega: o artista em cena não poderá ser sempre natural com a nova modelo. Terá de vestí-la, de fazê-la o molde perfeito. Talvez a tenha vestido desde sempre, com os olhos, sem nunca perder a função.
Esse artista que sofre não consegue dividir o coração entre a arte que consome de maneira fugaz, todos os dias, a cada segundo (inclusive no café da manhã, entre uma mordida e outra nos doces), e a moça à frente, mais jovem, que pede seu amor. Ela diz que o ama e ele não responde; só mais tarde o estilista repetirá as mesmas palavras.
Para além da história de amor não correspondido, Trama Fantasma é sobre a dependência entre dois seres, ao mesmo tempo sobre estranhos jogos que o casal estabelece. Ele, em seu avanço incessante, em sua busca pela perfeição, a certa altura precisa se abater: fica doente, acamado, envenenado pelo ambiente fantasmagórico em que se refletem apenas espectros, sob as estruturas brancas. Perto da morte ele sente-se vivo.
O que explica a escolha pela moça: da beldade em plena descoberta, da ingênua que pouco sabe sobre o mundo ao redor, passa à peça-chave dessa relação que apenas adultos obcecados pelo outro entendem de verdade. Anderson filma uma história de amor entre seres que flertam com a morte para renegar a fantasmagoria que os acomete.
As personagens aceitam esse tratado. Escapar a ele significa fugir dos mesmos ambientes, do tempo morto que desfila à tela sob o controle do cineasta. Nesse sentido, não escapa à mente outro filme recente de Anderson, O Mestre. Ambos abordam personagens presas de maneira inexplicável a círculos fechados, a vícios que pouco a pouco repelem o público. O tempo mobilizado pelo diretor é o que transforma seus filmes em experiências de mal-estar.
Pensar em um filme de terror, se depender do título, é um pouco óbvio. Fechar os olhos para tal possibilidade é bobagem. Há nesse estofo algo aterrorizante, ponto em que a delicadeza duela com o medo, com a incerteza, com a apreensão da moça em se tornar, naquele espaço da grande casa, mais um entre outros fantasmas a serviço do mestre.
Day-Lewis outra vez dá um show. As mulheres ao lado, Vicky Krieps e Lesley Manville, não ficam longe. Mas é dele o material que molda o sofrimento e, ao mesmo tempo, a repulsa: o homem insuportável e que, a certa altura, sairá em busca da amada, em noite de ano novo, em baile agitado, na sequência mais bela do filme de Anderson.
Desse material inesperadamente humano nasce um filme raro como outros do mesmo diretor. Seu estilista vive à beira da morte, enxerga o espírito da mãe (em suposto delírio, ou clarividência aqui aceitável) como uma criança em busca de respostas, alguém que não consegue parar de criar, a quem importa quase nada além disso.
(Phantom Thread, Paul Thomas Anderson, 2017)
Nota: ★★★★☆
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Post Mortem, de Pablo Larraín