Visages, Villages, de JR e Agnès Varda

A presença do artista visual JR traz Jean-Luc Godard à memória de Agnès Varda. Nos dois casos, um rosto escondido por óculos de sol, pessoas que lidam com a imagem, o cinema ou a fotografia. Não importa em qual ambiente, em qual hora do dia, lá estão as lentes escuras. Godard pode ser visto com óculos em diferentes filmes, como em O Signo do Leão, de Rohmer – figura distante, cômica, a do francesinho gênio e introvertido.

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Décadas depois, ao encontrar JR, Varda reencontra Godard. Volta ao cinema – ao do amigo francês que filmou (sem óculos) em Cléo das 5 às 7, também ao seu – nas viagens que faz com o novo amigo, o artista visual que prega fotografias em diferentes estruturas pela França rural e profunda, à procura de rostos e formas.

Esse encontro dá vez a Visages, Villages: fusão de idades, de gerações, de artes, de pessoas que ainda respondem ao afeto e à inegável passagem do tempo. Ele, com pouco mais de 30 anos; ela, com mais de 80. Ambos em um furgão pelo lado rural de um país, por paisagens, vilarejos, em diálogo com agricultores e operários.

Que fique claro: a semelhança entre JR e Godard é física. Eis um filme sobre a imagem, no qual o sentimento produz-se por sua presença. A imagem que modifica a vida das pessoas aparentemente simples que cruzam o furgão dos artistas, do qual, pela lata, sai a foto ampliada dos fotografados, ali mesmo, em cabine móvel.

O filme não esconde suas misturas. Até certa altura não se sabe por que foi feito, e a que ponto seus realizadores estão indo. Filme livre a partir dessa amizade, descontraído, dessa situação que move o artista: o desejo de invadir, de reencontrar o passado nos rostos das pessoas retratadas, ou nas antigas fotos, ou na memória.

E não se engana: há um tanto de interpretação, de pose, de graça semelhante à porção verdadeira, a do documentário. Personagens e realizadores não escondem a encenação, como no início, quando explicam como se encontraram – ou como não se encontraram. Brincam no espaço do cinema narrativo convencional: o encontro ao acaso, o esbarrar em algum ponto de ônibus, mercado ou padaria.

Os dois chegaram perto de se conhecer, mas não se viram. Brincam com esse efeito da ficção que não esconde a que se presta. E quando correm pelos espaços do Louvre – ela em uma cadeira de rodas, ele a empurrá-la -, reconfiguram o cinema de Godard, um momento mágico de Bando à Parte, em que os francesinhos corriam pelo mesmo local.

Movem-se ao espírito de descoberta, à necessidade de intervenção, sem preocupação alguma em parecerem falsos. É como se dissessem, a todo momento, que a arte dispensa catálogos e explicações, dispensa – no caso do cinema – o romantismo fechado da ficção clássica, no qual os seres existem para fazer o público acreditar que existem.

Varda é talvez a diretora de cinema mais importante da história. Antes de Truffaut ou Godard, antes de Chabrol ou Rivette, ela realizou o filme que antecipa a nouvelle vague, o seminal La Pointe-Courte. Outros trabalhos importantes vieram mais tarde. Em ofício dominado por homens, ela demarcou espaço com histórias intimistas.

Em Visages, Villages, encontra – não substitui – Godard na face de JR. Pede, por isso, que o segundo retire seus óculos e se revele. Pede isso o filme todo. Ao longo das viagens, o espectador conhece um pouco de seu olhar, ou de seu olho, de sua visão sem foco. É como se todo o cinema estivesse morrendo. O cinema que a geração de Varda inventou.

A morte da imagem é representada no rosto sem foco de JR, o rosto como viu a senhora Varda. O cinema passa sempre pelo olho de seu realizador, pela forma como este enxerga. Pouco antes, a cineasta tenta falar com Godard. Vai à casa do gênio recluso e não é atendida. Sofre com a distância do velho amigo, o mesmo que lhe retirou os óculos, em capítulo feliz de Cléo das 5 às 7, ao lado de sua musa Anna Karina.

O cinema mudou, diz Visages, Villages. Nem por isso o passado escapa. O cinema de Varda vive por ali, corre à frente. A praia e as pedras de La Pointe-Courte; os amigos em Cléo das 5 às 7; os girassóis de As Duas Faces da Felicidade; a França profunda em Sem Teto Nem Lei. Enquanto procura novas pessoas, ao lado do novo amigo, a memória não foge.

(Visages, Villages, JR e Agnès Varda, 2017)

Nota: ★★★★☆

Veja também:
15 grandes rostos da nouvelle vague francesa

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