Chegar ao Natal é inevitável. Há um caminho natural à data mais celebrada, ao feriado cristão, momento em que americanos – e outros povos do mundo, aqui assistidos do alto, por Deus e anjos súditos – mostram corações abertos. Momento crucial, neste caso, em que o cinema recorre à data após uma guerra mundial. Servia de remédio para o cinismo.
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À época, entre insinuações de sexo, damas fatais, câmera na rua, algo como A Felicidade Não se Compra só podia clamar pelo passado: é a ele que os anjos olham para descobrir o protagonista, a história do amável George Bailey – ou, antes, de um James Stewart em transformação, prestes a embarcar nas obras de Hitchcock e Anthony Mann.
O diretor Frank Capra, como seu astro, havia retornado da Segunda Guerra. O gosto do público tinha mudado. Sua obra, em pleno diálogo com a década anterior, era estranha demais – tão cedo – àquele espectador suscetível à melancolia, ao sofrimento, de ressaca, o que se refletia no também clássico Os Melhores Anos de Nossas Vidas.
Mais que uma disputa pelo Oscar une esses dois filmes. O de William Wyler, que ficou com a estatueta dourada, é sobre retornar para casa, sobre a América transformada, sobre novos tempos, produto do conflito; o de Capra, ao contrário, é sobre um homem que não consegue deixar sua casa. Tenta e fica, tragado como está ao passado.
Pois Capra, em movimento reverso, à época ousado sem deixar perceber, não teria outro sucesso de bilheteria: é provável que pouca gente tenha enxergado ali mais que “um filme de Natal”, e o próprio cineasta não concordava totalmente com o rótulo. Seu protagonista – assistido por anjos, galáxias ou deuses – tem a oportunidade de ver a vida de sua cidade sem sua existência. Percebe assim um tesouro: sua própria constituição.
Chega a esse pequeno filme da própria vida quando está sobre uma ponte, à neve, para se suicidar. É então abordado por um anjo, mas não qualquer um: em cena, Henry Travers está em busca de suas asas. O velhinho perfeito a essa figura amável, talhado à maneira do cinema dos anos 30, como Lionel Barrymore ou Thomas Mitchell.
A essa altura, Bailey tem tudo. Não consegue enxergar. Tem a mulher dos sonhos, os filhos dos sonhos, vive em uma daquelas cidades que ele – talvez sem saber – gostaria de construir, como diz no início. Essa é a história de um sonhador que não precisou ir longe para construir “sua cidade”; apenas ficou ali, emperrado, para marcar sua história.
No dia em que estava pronto para ir embora, após a morte do pai, viu-se obrigado a desfazer a mala. História de destino, obviamente para não se levar a sério em seus pequenos percursos, mas para se penetrar em sua totalidade, na inegável mágica à qual Capra lança-nos em sua sede por corações puros, necessidade que, de tempos em tempos, retorna.
Filme que questiona o cinismo, e que não escapa (não poderia) à forma das obras anteriores do cineasta, com idealistas que cantarolam ao menor sinal de alegria, que confrontam políticos corruptos, seguidos pela população e à contramão de vilões como o banqueiro interpretado por Barrymore, em seu trono, cercado por estátuas.
Capra era americano em excesso justamente ao apontar as maçãs podres de sua nação: senadores, banqueiros, homens ricos e avarentos, aos quais alguém como George Bailey não passa de um pobre apaixonado destinado à pequena família, à cidade perdida no mapa, a ser cortejado por uma bela garota (Gloria Grahame), talvez desesperada para tomar um ônibus e fugir desse espaço em que todos se conhecem.
O momento em que Bailey corre pela rua, feliz ao redescobrir a vida, torna-o candidato óbvio a ser sepultado pelos “novos tempos”. Sua sobrevida pode ser explicada pelo Natal, nesse rótulo ao qual o filme continua pregado: o homem em questão – tão amável, tão familiar – vive em um mundo de anjos na terra, com a família ao pé da árvore enfeitada.
(It’s a Wonderful Life, Frank Capra, 1946)
Nota: ★★★★★⤴
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
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