Os jovens de Na Estrada vivem com velocidade, empolgados, em constante transpiração. Bebem, drogam-se, dançam, transam e, claro, viajam para descobrir a si mesmos e conseguir escrever. Essas personagens inserem-se em um tempo de mudanças. A principal delas, Sal Paradise, ou Jack Kerouac, interpretada por Sam Riley, descobre outros jovens, influências, faz amizades, entrega-se, e então se lança à estrada.
Essas andanças dariam vez ao importante livro On The Road, que marcou a chamada geração beat. Em Na Estrada, o belo trabalho de montagem de François Gédigier, com o uso dos chamados jump cuts, ajuda a entender do que trata o filme: um tempo de fratura, de se quebrar a continuidade, a ordem, com novas ideias e intensidades.
Curta o Palavras de Cinema no Facebook
Em boa definição do crítico Roger Ebert, jump cuts são “cortes dentro de movimento ou diálogo contínuos, sem intenção de combiná-los”. Ocorrem no mesmo plano, como se este fosse tomado por choques, servindo ao mesmo tempo como dispositivo de distanciamento. Ou seja, o espectador “vê” e percebe esses cortes aparentemente pouco naturais.
Os jump cuts foram revividos e popularizados por Jean-Luc Godard em Acossado – filme que, para Ebert, representa o nascimento do cinema moderno. Em tempos atuais, esses “cortes de salto” estão por todos os lados, em milhões de vídeos no YouTube. Mas nem sempre – ou quase nunca – são empregados para dialogar com o tema a ser tratado. Em geral, esses cortes servem apenas para retirar a chamada “gordura” e tornar o vídeo mais dinâmico.
Como observa Michel Marie em A Nouvelle Vague e Godard, esse tipo de corte, chamado por ele de “salto”, “é uma figura muito frequente no cinema primitivo, até 1908, especialmente por Méliès, que o utiliza constantemente em suas trucagens, e no cinema de vanguarda dos anos 20”. Os jump cuts são definidos por ele como “supressão de algumas imagens na continuidade de um plano”. E observa que sua utilização foi “abolida pela decupagem clássica, porque provocava uma ruptura na continuidade visual”.
Em Na Estrada, belo filme de Walter Salles, há, entre vários, dois exemplos interessantes envolvendo os jump cuts, ambos com as personagens centrais do filme, ambos em momentos de euforia.
Encontro no bar
Ao chegar a um bar, o poeta homossexual Carlo (Tom Sturridge) cumprimenta os amigos. Esses instantes se alternam em cortes rápidos. Salles mantêm a câmera próxima das personagens, com os quatro rapazes em quadro, enquanto Carlo “passa” por cada um deles. Salles filma em primeiro plano, em diferentes ângulos, momento em que a turma está completa. Os cumprimentos de Carlo são evidenciados por meio de jump cuts, o que oferece a ideia de fragmentação – ainda que continuem no mesmo espaço.
Ele abraça um deles, faz um gesto com os dedos para Sal e beija Dean (Garrett Hedlund). Cada um dos cumprimentos ocorre entre cortes, provável supressão do tempo que, ao fim, oferece um ritmo interessante.
Após alternar enquadramentos, Salles leva o espectador à parte exterior do bar. Sal observa o diálogo de Carlo e Dean (pouco depois, o espectador descobrirá que o poeta é apaixonado pelo jovem galã que usa camisetas à la Marlon Brando). Ao contrapor o olhar de Sal à caminhada dos outros dois, o montagem também rompe a continuidade espacial. Os outros parecem estar cada vez mais distantes, enquanto Sal, com olhar de desejo, parece estar cada vez mais absorvido pelo atmosfera dos colegas.
Suicídio em alto mar
Com Carlo, outra vez o espectador descobre um interessante uso dos jump cuts, desta vez em close. Em uma das festas (uma das muitas) em que os amigos estão reunidos, ele conta a um convidado que esteve 20 dias em alto mar, “na calmaria, quando decidi me matar”. Diálogo típico dos excessos desse tempo de rompimento, de paixões explosivas.
A montagem alterna o rosto de Carlo entre o lado esquerdo do quadro (de forma frontal) e o direito (de perfil), como se o mesmo rapaz não pudesse ser visto – ou explicado – por um único ponto de vista. Alternam-se assim os “estados” da personagem – que ia se matar, mas não deixou um bilhete de adeus, e resolveu viver mais – de acordo com os cortes.
Os jump cuts, além dos pequenos saltos no tempo, constroem “outros” diálogos, suprimindo palavras ou trechos inteiros de uma conversa entre personagens. Por outro lado, é difícil afirmar isso com certeza, já que o montador pode ter cortado trechos longos ou apenas alguns instantes. No caso de Na Estrada, a montagem dialoga perfeitamente com o que a obra deseja expressar. “Seguir o coração”, diz Carlo, o que poderia ser dito por outros rapazes. “Viver. Vivenciar a possibilidade da vida, louco de êxtase, vingança e verdade.”
Veja também:
Entrevista: ‘O cinema de Glauber Rocha rompe com os padrões estabelecidos’