O mundo atual esconde-se sob a aparência da segurança e da justiça. Puro disfarce. Tal constatação, em O Outro Lado da Esperança, não é novidade no cinema de Aki Kaurismäki. Seus seres de faces petrificadas atestam esse mal-estar o tempo todo, em filmes anteriores, em jornadas que nem sempre levam a muito longe.
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Cinema de personagens atoladas no que a Europa, hoje, parece ter se transformado: um disfarce, uma propaganda do bem-estar social. Essas pessoas não precisam da palavra, que em momento ou outro cai em desuso: elas apenas observam, tristes, ou apenas se locomovem para negar a morte. Uma das personagens de O Outro Lado da Esperança, a certa altura, resume bem a questão: “Morrer é fácil. Prefiro viver”.
Nesse estado em que se desenha a falsidade, o imigrante precisa se disfarçar, usar outra identidade para viver ali; no restaurante em que passa a trabalhar, ele, outros funcionários e todo o ambiente são decorados com peças e figurinos japoneses para receber uma freguesia oriental. Disfarçam-se para sobreviver, para seguir em frente, diz o autor Kaurismäki.
Curiosa, por sinal, uma das primeiras cenas, quando o mesmo imigrante, um refugiado vindo da Síria, sai do meio do carvão, sujo da cabeça aos pés, para cair nas ruas da Finlândia. A chegada dá a exata ideia do tamanho do problema: ele nasce sob a sujeira, nasce para não conseguir se disfarçar, entregue como está à personagem que veste: ele não pode ser outra coisa senão um visitante sujo e sem nada.
Após tomar um banho, consegue chegar à delegacia. Tem nome, rosto, tem vida e passado. É Khaled (Sherwan Haji), protagonista acidental, perdido, mas firme, de palavras certeiras, descrente. A mulher que o interroga – após ter as digitais lidas, após ser marcado como número e levado a uma cela, como prisioneiro – pergunta se ele possui religião. O rapaz diz que não. Ela classifica-o como “ateu”. Ele diz que não é isso.
Ainda resta uma esperança, como parece dizer, ao fim, seu sorriso – apesar da situação lamentável em que se vê. À frente, uma muralha de fábricas ocupa sua visão, ou o impede que veja além: subida de chaminés, de construções antigas de um continente cuja humanidade deu vez às mesmas e velhas arquiteturas, a um passado incontornável, ao velho sonho daqueles que para lá partiam: encontrar emprego.
Khaled encontra. E, nele, esbarra em outra personagem importante. É o patrão, Wikström (Sakari Kuosmanen), aparentemente rude, sem coração, pronto para estender as garras – mas nem tanto – do capitalista explorador. Decide, a exemplo do refugiado, mudar de vida. Deixa a mulher, deixa o antigo emprego e, após vender seu estoque de camisas e ganhar dinheiro em jogos de roleta, compra o restaurante onde o sírio encontra emprego.
Como no anterior O Porto, Kaurismäki leva à proximidade entre europeus e refugiados. Retira de todos, de qualquer lado, a interpretação excessiva, o exagero. Prefere expressões leves, silêncios, pequenas indicações que, afinal, dizem tudo o que é necessário saber sobre essas pessoas. A elas somam-se seus conhecidos planos-detalhe, de objetos que também ajudam a compreender o drama e as figuras em cena.
Pelas ruas, xenófobos nacionalistas agem para tentar retirar a máscara dos perseguidos. Ou, ao contrário, para colocá-la de vez naqueles que são, não se nega, seres humanos: os criminosos atacam porque os outros pertencem a uma diferente nacionalidade ou país, porque estariam ali – na visão grosseira – para “furtar” o emprego dos locais.
O Homem Sem Passado, de 2002, é semelhante: Kaurismäki conta a história de um imigrante suíço que, ao chegar à Finlândia, é atacado por criminosos e perde a memória. Como o sírio que nasce – ou renasce – das cinzas, ele precisa criar uma máscara para si para viver nesse meio em que o dinheiro venceu, mas que ainda tem um pouco de humanismo.
(Toivon tuolla puolen, Aki Kaurismäki, 2017)
Nota: ★★★☆☆
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