O cinema já não era mais o mesmo quando Abel Gance realizou sua obra máxima, Napoleão. O próprio realizador contribuiu à evolução da sétima arte com os incríveis Eu Acuso! e A Roda. Explorava novas possibilidades da linguagem fílmica, como a montagem acelerada e o caráter subjetivo da câmera, seu estado de alma.
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Em 1927, Gance lança o painel perfeito da falsificação histórica, com figuras sem carne e osso e moldadas à película como fantasmas; seres que, a despeito da estrada real, de pedras e um amontoado de terra, imprimem algo mítico. Por um desses caminhos, a certa altura de Napoleão, o herói surge como o homem simples de um meio simples.
A personagem recorre à leitura, ao pensamento. Não se duvida de sua grandeza. Gance continua preso aos mortos que fecham Eu Acuso!, aqueles que cobram os vivos. Eles persistem sob as faces brancas, carregadas de retoque, de homens como Napoleão ou Danton. Os closes são extraordinários, ocupam a tela toda, seu ambiente natural.
Quando a monarquia chora seus dias derradeiros, é o rosto de Napoleão Bonaparte (Albert Dieudonné), em montagem paralela, que ocupa o quadro. A alternativa de poder, a saída, a forma ideológica – entre a fílmica – de impor o líder que então nascia. A montagem é ainda mais agressiva em outros momentos, a partir das lições que o cineasta francês deixou e com as quais ajudou a moldar a vanguarda da época, incluindo Sergei Eisenstein.
Ao cavalgar pela Córsega, pouco antes de comprar briga com conterrâneos favoráveis à anexação à Inglaterra, Napoleão é fundido ao ambiente: a montagem mescla sua imagem à forma das montanhas, entre o plano médio do homem e os planos gerais desse paraíso do qual emerge o mesmo líder, antes de fugir e enfrentar, sozinho, o oceano.
Mesmo quando vê sua bota de papelão esfarelar com a água, aos olhos das mulheres que acham graça nessa possível amostra de fraqueza, o Napoleão de Gance resiste. Seu rosto com cabelo liso ao canto, de bordas escuras, de olhos fundos foi moldado ao aspecto fantasmagórico de um cinema feito à posteridade.
Ao que parece, a noção de mito ultrapassa o desejo de se exaltar apenas o líder. Gance vai além do homem e da História; o cinema revelava-se o meio seguro para eternizar figuras e universos. Seu filme, sem depender do ator ou da atração causada pela personagem histórica e sua trajetória, é o melhor retrato de Napoleão à tela grande.
Na cena do oceano, por exemplo, há mais que um homem em um barco. As águas revoltas coincidem com importantes decisões políticas tomadas em outro local e que definirão o futuro da França. De novo, a montagem paralela. A tempestade (literal) chega ao futuro líder ao mesmo tempo em que outra tempestade (metafórica) recai sobre os franceses.
Ao longo de cinco horas e meia da versão restaurada, vemos várias inovações técnicas. As câmeras pesadas flutuam, cortam ambientes, viajam através da multidão. O movimento simula a onda que recai sobre o país: uma gangorra que invade, machuca, ao mesmo tempo desorienta os olhos voltados ao parlamento, às novidades embaladas aos gritos do povo.
Os líderes desse tempo, no reinado de terror ao qual a França, por um certo período, foi lançada, retornam – com as cabeças no lugar – para afrontar a personagem-título. Antes de seguir à Itália, ao espetáculo dos farrapos que Gance usa para fechar o filme, Napoleão precisa duelar (em voz inexistente) com Robespierre, com Marat, com Danton. O herói é assombrado pela História, como se constata.
O que nos faz retornar à expressão lançada no início dessa análise: “falsificação histórica”. É verdade que as ações de Gance tornar-se-iam regra em muitos cinemas: seu protagonista não tropeça ou força sua entrada na História, não trabalha para ela, mas, antes, para ela é tragado. Eis o máximo dessa falsificação: ele é o escolhido, o predestinado.
Por outro lado, Gance não cora. Não esconde. Seu mito é servido desde o início, no prólogo, em sua infância. As crianças travam uma guerra com bolas de neve, erguem barreiras. A brincadeira é tratada como verdade na escola militar. O pequeno corso leva à frente sua fúria, vence a batalha. Flerta, depois, com a águia, companheira, guia e reflexo: o animal ocupa o topo de sua cadeia alimentar e, como Napoleão, observa o mundo do alto.
Entre as inovações técnicas, a mais citada é o tríptico, a junção de três imagens que ora formam uma só, ora alargam a leitura em três situações ou símbolos que dialogam. Cabem nessa experiência a face do herói, a da amada, os farrapos convertidos em bravos guerreiros, o globo terrestre. Como seu herói, Gance não encontra limites.
(Napoléon vu par Abel Gance, Abel Gance, 1927)
Nota: ★★★★★⤴
Veja também:
A Roda, de Abel Gance