Para caçar o monstro branco, o capitão Ahab impõe sua força e sua retórica: “há um Deus sobre a Terra, e um capitão sobre o Pequod”. O líder leva todos seus homens para matar a baleia branca, Moby Dick, nem que seja para deixar uma boa caçada, uma boa “colheita” gerada pelo ataque a algumas baleias escuras, com arpões e barcos.
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A história em questão é conhecida: o livro de Herman Melville é uma das aventuras obrigatórias da literatura, obra cuja leitura é tão importante a alguns, em vida, quanto plantar uma árvore e ter um filho. Em linhas gerais, é a história de um lunático contra a natureza, assistida por um marinheiro de primeira viagem, cheio de descobertas.
O lunático em Moby Dick é, claro, Ahab, interpretado aqui pelo astro Gregory Peck. Mas Peck esforça-se para ser insano, imbuído pelo olhar perdido, voltado ao alto, pela barba, pela maquiagem que reproduz o corte no rosto, a linha atravessada no homem que dá a exata intensidade do grande animal que a traçou.
A maquiagem, portanto, à frente do homem: ainda que Peck seja inegavelmente um grande ator, a personagem pede mais que um molde típico de vilania. Mítico, anunciado antes por palavras, pela forma trêmula como todos o citam (e, é verdade, como está no livro), o que se tem é apenas um contorno desprovido de sentimento verdadeiro.
John Huston é famoso por levar grandes aventuras à tela. Mais ainda, famoso por vivê-las com seus atores e equipe, pelas bebedeiras com Bogart na floresta, enquanto filmavam Uma Aventura na África, ou quando levou à frente o espírito da derrota, da pobreza, com frequente carga realista na obra-prima O Tesouro de Sierra Madre.
Com Moby Dick, vai à grande aventura, ou ao seu sentido, a partir de Melville: o homem embriagado pelo instinto de vingança, esse traço humano que o leva a caçar – para além de qualquer quantia de dinheiro, do óleo, da carne – o grande monstro que se põe como líder do oceano, desprovido de racionalidade. Levado pelo instinto, o homem aproxima-se então da fera, situação que valida apenas a sobrevivência.
Se Ahab é o primeiro mito, a baleia é o segundo. O encontro de ambos é contado pelo simpático Ishmael (Richard Basehart), assistido também pelo sereno Starbuck (Leo Genn). São homens de carne e osso, coadjuvantes, à frente da luta de titãs, sob o risco de serem sugados também ao fundo do oceano, à morte.
Huston pinta o filme como uma história retirada de um velho pergaminho, envelhecida, amarelada. Essas imagens com frequência se chocam com o realismo dos rostos das mulheres no momento da despedida, com a tremedeira da câmera nas sequências de caça à baleia, em botes, entre o oceano e o estúdio, o verdadeiro e o falso.
A cor ajuda a pensar no lado religioso do filme. Ahab, em sua missão pessoal, ao colocar a vida dos homens a serviço da morte do monstro, estaria desafiando o Divino. Os demais, ao o apoiarem em troca de uma moeda de ouro, seriam tragados por sua blasfêmia. Vem o anúncio do mal pelos olhos do índio, Queequeg (Friedrich von Ledebur), a penumbra, uma briga de faca entre tripulantes e depois a tempestade.
O púlpito da igreja, no início, reproduz a ponta do navio. O pastor de barba saliente, vivido por Orson Welles, conta a história de Jonas, figura bíblica que se inclina a Deus para ser expelido do corpo da baleia. Ao contrário de Ahab, nem vilão nem humano, que perfura a carne do animal para se ver preso a ele, para seguir, com seus homens, ao fundo do oceano.
(Idem, John Huston, 1956)
Nota: ★★★☆☆
Veja também:
À Sombra do Vulcão, de John Huston