Os anjos de Wim Wenders pairam sobre Berlim

Levado a observar a humanidade por milênios, o anjo cansa de ser anjo. Quer ser homem, quer sentir sabores, ver cores, esfregar uma mão contra a outra para se esquentar um pouco e escapar do frio. Essas pequenas ações seduzem os imortais, sobre prédios e estátuas, ao longo de Asas do Desejo, de 1987.

Wim Wenders, com roteiro escrito em parceria com Peter Handke e Richard Reitinger, aposta justamente na observação. A maior parte do filme centra-se no olhar dos anjos, ao mesmo tempo estranho e que sempre esteve por lá – ou por aqui, perto e longe –, desde o início da vida, do surgimento do homem, das guerras.

Curta o Palavras de Cinema no Facebook

São dois anjos que ocupam o centro: Damiel (Bruno Ganz) e Cassiel (Otto Sander). Acompanham a vida dos outros, dos viajantes que chegam a Berlim de avião aos viajantes em pequenos trajetos, de carro ou a caminhar entre escombros, próximos do muro – ou dos muros – que divide a cidade e as pessoas.

Os anjos assistem à história, não a sentem. Sabem inclusive como teve início o problema da humanidade, a certa altura relembrado por Damiel. Quando o homem decidiu deixar seu círculo e ser livre, correndo de maneira diferente e para longe, começou a guerra. Ele ousou cruzar uma fronteira. “Voaram pedras”, recorda o anjo.

Asas do Desejo é justamente sobre atravessar uma fronteira. À época, Berlim era dividida por um muro – e este dividia o mundo todo. Wenders capta esse sentimento de maneira exemplar e o metaforiza no desejo do anjo, o de cruzar uma fronteira e sentir a história na pele. Ou simplesmente de se tornar humano e sentir o que está do outro lado e que tanto seduz. Ver o mundo por outro ponto de vista.

Transformado em homem, o anjo passa a sentir o mundo como uma criança – como se visse algo que seus olhos ainda não tinham visto. Passa a ver a cor, a sentir o gosto do café, a sangrar. Feito homem, o anjo retorna ao estado infantil, à sensibilidade que falta ao adulto. “Quando a criança era criança”, repete o narrador e protagonista ao explorar o olhar que restitui graça à vida, na reta final do grande filme de Wenders.

Ainda anjo, Damiel descobre a trapezista Marion (Solveig Dommartin). Como outros artistas, ela está ancorada em Berlim, em apresentações povoadas pelo olhar das crianças. E veste asas de anjo enquanto move-se no trapézio, enquanto divide seus pensamentos – como outros seres de passagem – com os anjos e com o espectador.

A trapezista espera por Damiel. Sabe que surgirá alguém em seu caminho, na jornada vai além do filme de amor ou aventura espiritual: é, ainda mais, sobre o encontro entre lados que não se tocavam antes de cruzar uma fronteira, ou um muro.

É o que torna, por consequência, sua continuação tão inferior. Lançado em 1993, seis anos depois de Asas do Desejo, Tão Longe, Tão Perto reduz-se a uma aventura física sobre um anjo que se torna homem e descobre os vícios e os problemas do mundo real. O protagonista agora é Cassiel, seguido pelo anjo Raphaela (Nastassja Kinski).

Diferente do anterior, a continuação mantém-se em cores em sua maior parte. Ou seja, situa-se mais no mundo real do que no universo dos anjos. Retornam personagens anteriores, como o próprio Damiel, agora dono de uma pizzaria, casado Marion e pai de uma filha; e também o ator Peter Falk, vivido pelo verdadeiro.

Ao invés de uma aproximação à vida das pessoas a partir dos anjos, Wenders aposta em um mergulho nos problemas de um mundo não mais dividido por um muro, após o colapso do bloco socialista. É o terreno no qual Cassiel embriagar-se-á antes de se envolver com um traficante de armas e filmes pornográficos.

No alto dos prédios e nas estátuas, os anjos conversam sobre a civilização. Raphaela questiona Cassiel por que as pessoas estão mais distantes e por que é mais difícil tocá-las. O outro explica que essas pessoas acreditam mais no mundo físico, menos no espiritual – o que, completa ela, levou-as a criarem imagens de tudo.

Vivia-se, àquela altura, no mundo-imagem, no mundo tecnológico. Os anjos têm razão de reclamar: o problema não era lidar com fronteiras ou muros, mas com sua total exclusão. As pessoas refugiavam-se então no abstrato, nos prazeres fáceis da pornografia. Um mundo em que tudo é pirataria e está à mão, e no qual os anjos perderam o sentido.

A relação dos alemães com o passado nazista é explorada por Wenders nos dois filmes. Em Asas do Desejo, imagens reais de algum documentário fundem-se às de um filme realizado em um prédio aos cacos. O longa feito ali, encabeçado por Falk (um anjo que decidiu se tornar homem), não poderia ser sobre outro assunto senão o nazismo.

Ainda nesse cenário, Damiel penetra o pensamento dos figurantes. Os problemas do passado nazista ecoam em seus textos. E não se sabe ao certo se esses textos pertencem às personagens do filme ou à vida real. Vida e interpretação confundem-se enquanto os anjos são convidados a ver a humanidade pela lente do cinema.

Com momentos próximos à comédia, Tão Longe, Tão Perto não tem a mesma profundidade. Levados ao estado da carne, seus anjos não estão ali apenas para encontrar (e ver) o essencial, para fornecer ao espectador o sentimento de ultrapassar a fronteira. Recorrem à aventura, até mesmo ao encerramento trágico.

(Der Himmel über Berlin, Wim Wenders, 1987)
(In weiter Ferne, so nah!, Wim Wenders, 1993)

Notas:
Asas do Desejo: ★★★★☆
Tão Longe, Tão Perto: ★★★☆☆

Veja também:
Mulheres aprisionadas (em três grandes filmes de Zhang Yimou)

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s