Do lado de fora do cinema, enquanto pessoas passam pela rua, é possível ouvir uma frase do filme anterior de Theodoros Angelopoulos, O Passo Suspenso da Cegonha: “Quantas fronteiras devemos cruzar para chegarmos em casa?”. A frase indica que a jornada de Angelopoulos pelas fronteiras não chegou ao fim. Seu protagonista em Um Olhar a Cada Dia, vivido por Harvey Keitel, é o próprio cineasta.
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A obra, confessa o realizador, é autobiográfica. A jornada em questão é a de um diretor de cinema em busca de um tesouro perdido: três rolos de filmes dos irmãos Manaki, cineastas pioneiros da região dos Balcãs. A personagem de Keitel, chamada apenas de A, tenta encontrar essas películas enquanto cruza fronteiras.
Sua jornada é de descobrimento, “toda a aventura humana, a história que nunca termina”. O homem chega ao fim para ver os filmes perdidos, depois de atravessar uma região em conflito, na qual real e representação sempre se confundem, à qual é lançado sem nunca conseguir estar à parte, tragado à guerra que se insinua.
Chega ao fim como um Ulisses moderno, olha a si mesmo depois de olhar para a tela branca do cinema aos cacos; proclama seu retorno em roupas diferentes, transformado, para mais tarde contar suas histórias a alguém que o ame e, noite após noite, esteja disposto a ouvi-las. A aventura de um homem em busca do olhar perdido.
Passa pela Grécia, pela Albânia, pela Romênia, depois pela Bósnia. Passa por regiões em guerra, cinematecas, museus, por escombros – sob um constante clima nublado, em desespero que deságua em beijos e aproximação. Busca consolo em mais de uma mulher – e elas, talvez na falta de algo a agarrar, entregam-se em igual desespero.
O protagonista encontra seu passado, o espírito da mãe ou apenas sua memória. Vê-se adulto na época em que era criança. Da estação de trem de Bucareste segue para a casa da família, à festa organizada pelos avós; embrenha-se no passado com alguma naturalidade, pouco deslocado, como uma personagem de Ingmar Bergman.
Mas quando se trata de comparações a grandes diretores, Angelopoulos com frequência liga-se a Andrei Tarkovski. Seus planos-sequência e o uso do tempo aproximam-no do diretor soviético. Sua ação desenrola-se com calma, livre do jogo dos cortes, do plano/contraplano, da montagem alternada. O diretor grego permite até soar artificial quando se aproxima da poesia e, por ela, aceita matar o realismo.
A trajetória de seu cineasta, por isso, é interior. Os sinais do mundo verdadeiro – cruzando territórios, em região em guerra, desintegrada, a antes Iugoslávia – são contrapontos à memória, também à descoberta do olhar perdido (os irmãos Manaki).
Ao fim, o curador da cinemateca de Sarajevo (Erland Josephson) convida o protagonista a andar pela cidade entre a neblina. É quando as pessoas saem de suas casas sem medo da guerra e se sentem mais protegidas. É quando aderem aos rituais de felicidade e tristeza: a orquestra, o teatro, a dança, também um cortejo fúnebre.
Em um mundo em conflito, a bela paisagem não sobrevive fora da neblina espessa – o que nos remete a outro grande filme de Angelopoulos, Paisagem na Neblina. Enquanto o cineasta caminha pelo espaço que não se vê por inteiro, descobrimos que a imunidade, mesmo momentânea, é ilusória: nesse velho mundo comunista – agora a grande estátua de Lênin sobrevive como artigo de colecionador –, o conflito armado segue fazendo vítimas. Os atiradores não têm faces nem nacionalidade definida.
E desse velho mundo dividido, enquanto observa a luz na tela branca, às lágrimas, o cineasta promete retornar para casa levando suas histórias. Continuará preso às memórias, ao que o torna humano, à “história que nunca termina”.
(To vlemma tou Odyssea, Theodoros Angelopoulos, 1995)
Nota: ★★★★★
Veja também:
O Filho de Joseph, de Eugène Green
Um dos meus filmes prediletos de todos os tempos! A trilha sonora é de arrepiar
Uma bela música, sem dúvida! Obrigado por passar por aqui! Abraços!
Olhar a neblina … procurar-se.