O problema com a menina meiga e magra talvez não passe de medo masculino. O viúvo Shigeharu Aoyama (Ryo Ishibashi) esteve, por algum tempo, apaixonado, deixando-se levar pela moça que só lhe dizia coisas boas, a mesma moça que desapareceu na viagem que fizeram juntos a um balneário, sem que ele entendesse seus motivos.
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Entre devaneio e realidade, Audição, de Takashi Miike, prefere o ponto de vista do homem. Do homem que busca uma companheira anos depois de perder a mulher, após o filho – agora um adolescente – sugerir que o pai case-se de novo. A mulher que foge do hotel, eleita a “companheira perfeita”, será também, mais tarde, uma torturadora.
E talvez seja assim, segundo o olhar dele, para maquiar sua impotência ou qualquer outro motivo que a fez fugir. Para ele, é mais fácil imaginá-la como vilã, alguém que vive em um mundo grotesco o suficiente – e oposto ao seu – para não ser digno de um homem como ele. O que está em cena é o medo do sexo oposto, ou sua incompreensão.
Aoyama encontra Asami (Eihi Shiina) em um jogo tipicamente masculino: com um amigo, um produtor de cinema, ele participa de uma audição. A desculpa, ali, é encontrar uma atriz para um filme a ser feito – e o foco, claro, é aproveitar a situação em que essas mulheres despem-se (até de forma literal) para os entrevistadores.
O sexo masculino coloca-se de um lado da mesa: analisa, observa, escolhe. Ao feminino resta falar de si, fazer graça, certamente – para muitas delas – viver um papel. Ao se eleger vilã – ou ser feita assim pelo olhar de Aoyama –, Asami decide participar do jogo. Mais tarde, quando se torna torturadora, levará à frente suas próprias regras.
Ainda que pareça machista, ao colocar o homem como presa da mulher louca, um homem humanizado e vítima completa aos olhos do público (é verdade que sua opção pela audição nunca soa muito ofensiva), o que se vê é uma crítica ao olhar masculino. Nesse caso, um machismo que se esconde não apenas no bom homem, mas, sobretudo, na mulher vítima de outros homens, como o padrasto e o professor de balé.
O passado de Asami aos poucos vem à tona. Nos delírios de Aoyama, ele descobre – ou cria – essa personagem feminina aniquiladora, alguém que invade sua vida, toma-lhe seu coração e simplesmente desaparece; alguém maquiavélica, fechada, que certamente não poderia assumir outra imagem, ao homem, senão a da torturadora.
Essa mulher malvada será montada aos poucos. Alguns momentos deixam ver algo errado: é possível acompanhar seu silêncio, sua cabeça voltada para baixo, os cabelos na frente da face, a menina solitária em sua casa desarrumada, esperando o telefone tocar.
A personagem que ela assume pode ser um desejo oculto do mesmo homem: ver a bela menina ingênua, magra, bailarina, converter-se em dominatrix, carregando inclusive seus apetrechos, invadindo sua casa para envenenar sua bebida. Ao homem impotente é mais fácil aceitar essa personagem. Talvez essa fraqueza cause mais dor que a tortura.
Ao espectador, vista de baixo para cima, no ponto em que passa a dominar, a vingadora deixa palavras quase como sussurros: “Kiri, kiri, kiri”. É assustador pela aparente leveza, pela forma quase delicada que impõe antes de atacar o homem no chão e imóvel. Em mais de uma hora, o filme limita-se às andanças e descobertas do viúvo, sem revelar muito sobre ela. Ao fim, sua revelação é perturbadora e inesquecível.
(Ôdishon, Takashi Miike, 1999)
Nota: ★★★★☆
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