As personagens de David Mamet ora ou outra são vítimas dos sentimentos: deixam-se levar pelos outros e, quando percebem, estão presas a uma trapaça. Quem serve o público é quase sempre o inocente, ou a vítima, a personagem que cairá na teia dos golpistas. É quem serve o filme com sentimentos, os únicos verdadeiros.
Ao conhecer os métodos de Mamet, o espectador começa a ficar viciado. O diretor e roteirista, tão aclamado, quase sempre se rende às situações, às possíveis e previsíveis reviravoltas – mais que às personagens. E, a certa altura, é como se o próprio Mamet reconhecesse a necessidade de superar seu método: contra a reviravolta que se desenha ele impõe outra, talvez ainda mais mirabolante, às vezes inverossímil.
Curta o Palavras de Cinema no Facebook
É assim em A Trapaça, de 1997. Desde os primeiros instantes fica claro que alguém enganará o protagonista – desde sempre confiável por trás dos óculos redondos, do jeito sério como se coloca ao chefe (Ben Gazzara), ao questionar sua parte nos negócios – para conseguir o projeto que desenvolve, considerado lucrativo e ultrassecreto.
Ao público não é entregue tudo. O projeto – mais tarde roubado, claro – é um McGuffin, ou seja, algo vital ao movimento da trama, mas que não precisa sequer ganhar forma material. Além do recurso narrativo, Mamet mostra que aprendeu outras lições com Alfred Hitchcock, a começar por uma coleção de personagens cruéis e detalhes variados, como chaves, livros, armas, cofres.
Cada pequena peça leva o honesto Joseph (Campbell Scott) à derrocada. Entre os tubarões escondidos por ali ele é quase nada. Em viagem a algum lugar paradisíaco ao qual os mesmos tubarões fogem para fazer seus negócios (e conseguir presas), ele acredita ser importante. Impressiona os demais com números, tenta resistir aos flertes de uma jovem companheira da empresa e conhece um homem atraente.
Ela, interpretada por Rebecca Pidgeon, deseja ganhar sua confiança: oferece-se sem ruborizar, ao mesmo tempo suspeita, ao mesmo tempo amável. Ele, o homem atraente, é vivido por Steve Martin, um ricaço que pede ao outro não mais que a amizade. E, com ela, ganha a atenção do espectador, que logo percebe o desenho da trapaça.
Tão importante quanto a teia é a ambientação, além dos sinais paralelos. Mamet leva à espionagem empresarial, ao meio de pessoas educadas, bem vestidas, ao universo quase exclusivamente americano que se impõe: se não tem uma conta na Suíça, basta um clique no computador para concretizá-la; se não faz parte de um clube chique e exclusivo, basta comprar o passaporte e colocar nele a assinatura.
O que os golpistas oferecem é, antes, a elegância – mas embalada pela ideia da camaradagem. O golpe maior está na cegueira em relação ao mesmo sistema que antecede a espionagem empresarial e a “empresa” que administra o golpe: o próprio sistema que se escancara, no qual Joseph ainda tentava acreditar. Ao fim, quando um dos criminosos diz que o dinheiro move o mundo, está dizendo a pura verdade.
E, de novo, dizendo algo que extrapola o espaço dos criminosos, com suas salas e clubes falsos: está apenas falando a língua à qual Joseph manteve-se adepto, um jovem escudeiro que lança números altos em pequenas lousas, nos paraísos perdidos, em reuniões com homens de negócio. Para, quem sabe, retirar deles alguns suspiros.
Quando o fundo e a frente se confundem, o golpe é quase natural. Por ali, Joseph é esmagado pelos próprios trejeitos, pelos sentimentos, pela maneira como ainda alimenta esperanças no público. Como se, entre tantos larápios, o fraco fosse desejável.
(The Spanish Prisoner, David Mamet, 1997)
Nota: ★★★☆☆
Veja também:
Dez grandes filmes que investigam a natureza do mal