Paris é uma cidade de vidro e metal. Cidade cujas formas opõem-se ao humano estranho, de corpo um pouco arqueado, homem grande que fala pouco, um certo senhor Hulot. A cidade nada tem a ver com ele, que não consegue se adaptar às novidades.
A cidade em questão está distante do que é comum imaginar, a Paris mítica de espaços antigos e gente apaixonada. Ao contrário: torna-se, em Playtime – Tempo de Diversão, um espaço opressor, no qual a comédia tira proveito justamente de suas repetições, arquiteturas, máquinas em movimento, da impressão de não se sair do lugar.
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Contra ela há o Hulot de Jacques Tati, homem à moda antiga que não precisa de palavras para que se veja, ainda cedo, sua inadaptação. Mas a comédia não é feita apenas desses opostos: mais ainda, está na incapacidade dessa mesma metrópole em se manter sobre suas próprias estruturas, na ironia de que tudo aquilo parece estar próximo a se desfazer em pedaços, com portas que quebram e tetos que despencam.
Nesse jogo genial de Tati, Hulot pode tomar distância – e tomará o tempo todo, saindo e voltando, até desaparecer. A personagem célebre, bom lembrar, tem laços com outras da comédia cinematográfica, um que vale destacar: como Carlitos, por exemplo, Hulot não tem uma história, não tem origem. Apenas existe em ações intermináveis.
O grande crítico André Bazin lembra que Tati cria um universo antes de criar o riso. “Um mundo se ordena a partir de seu personagem, cristaliza como a solução supersaturada em torno do grão de sal ali jogado.” E diz que Hulot é engraçado “quase que por tabela e, em todo caso, sempre em relação ao universo”.
E é por isso que a personagem permite se ausentar. O ambiente – e sua comédia – vive sem ele. Entre a ação, Hulot lembra o espectador das diferenças, da dificuldade de se caber e viver nesse mesmo local, na cidade de formas repetitivas e na qual alguns sobreviventes ainda fincam os pés – como a vendedora de flores da esquina.
Pequenas personagens preenchem esse painel: a mesma vendedora, um velho amigo do exército, o americano que fala alto, o homem de nariz machucado e, claro, a turista americana presenteada por Hulot, ao fim, enquanto segue em sua viagem de ônibus, pela cidade, entre o dia e a noite, sob as luzes dos postes arqueados.
A comédia depende das entradas e saídas, dos encontros e desencontros. Hulot perde-se para se ver nos mesmos ambientes, e todo a harmonia chega à perfeição quando o público assiste às situações feitas em silêncio, ao movimento distante e impessoal. E nenhuma delas tem tamanha representação como a sequência em que o protagonista está no apartamento de um amigo, local com parede de vidro.
O diretor posiciona a câmera fora do prédio. Como quase todos os momentos de Playtime, alternam-se planos gerais e planos conjuntos; a visão de um apartamento, de um cômodo, logo dá espaço para dois, depois quatro, enquanto se ouve apenas o som da rua, da cidade, enquanto se vê o ônibus das turistas americanas passar por ali.
Dá para entender por que Bazin gostava tanto de Tati (o crítico francês não viveu para ver Playtime): há aqui um cinema que respeita o tempo das ações em um mesmo plano, que embute em uma mesma imagem mais de uma situação, que recusa a ideia de estar próximo do cinema mudo. Os filmes de Tati devem parte de sua grandeza justamente ao som, aos efeitos que produzem a ambientação e seu poder.
Nesse caso, o poder de levar ao mal-estar produzido pelo som das poltronas que não amassam, dos carros que não param de circular, do pano contra a vidraça, de tudo o que compõe essa vida na cidade grande e que, à maneira de Tati, fica à frente, contra o movimento de seus seres – ele incluso – ao fundo.
A sequência dos apartamentos com paredes de vidro mostra o absurdo dessa modernidade: a vida como aquário, como vitrine, algo impenetrável. Ao menos resta um alento a quem vê as ações pelo lado de fora, da rua, pela ótica de Tati: separados pelas paredes e voltados às suas televisões, moradores de diferentes apartamentos parecem interagir. Entre tanta frieza e distância, a imagem devolve alívio.
(Playtime, Jacques Tati, 1967)
Nota: ★★★★★⤴
Veja também:
Os Terroristas, de Edward Yang