Eu, Daniel Blake, de Ken Loach

De rosto liso e roupas simples, Daniel Blake não deixa ver quase nada. É como outras personagens de Ken Loach, em intermináveis caminhadas, em disputas contra instituições gigantes, ainda dispostas a algum gesto de afeto e alguma brincadeira pelo caminho. São poucos os seres que expressam tanto com tão pouco.

Daniel sofreu um infarto e, segundo os médicos, não pode retornar tão cedo ao trabalho. O Estado tem outra versão: Daniel está apto a trabalhar, pelo menos segundo uma tabela que dá pontuação aos desvalidos. Daniel deveria atingir 15 pontos ou mais. Atingiu 12. Esse resultado leva então à caminhada de um homem em busca de seus direitos, alguém doente o suficiente para receber o seguro saúde – menos aos olhos do Estado, implacável.

O protagonista de Eu, Daniel Blake foi gestado há décadas. Está no início da carreira de Loach, em Cathy Come Home, sobre uma família que não consegue pagar o aluguel e vaga de abrigo em abrigo, por cortiços, para ter um teto. São seres comuns em luta contra um sistema que lhes dá pouco ou nenhum apoio. Ao contrário, persegue-os.

Está nesse início sem estar: como a Cathy que não demora a expressar sua revolta, e que logo perde o marido e a guarda dos filhos, Daniel não vê outra saída senão continuar nesse labirinto de documentos, cadastros on-line, seguranças mal-encarados, músicas intermináveis enquanto o cidadão espera atendimento pelo telefone.

Interpretado por Dave Johns, Daniel é carpinteiro e não se conforma com um sistema que pouco ou nada faz para homens como ele, sobretudo homens como ele: seres a quem a internet não é uma realidade, pessoas que, por opção, não se preocuparam com a passagem do tempo. E isso não torna Daniel um fracassado.

A distância entre o Estado e as pessoas é refletida pelo clima frio, pela dificuldade de se encontrar afeto ou companheirismo. Loach, contudo, ainda crê nas pessoas, as raras que se interessam pelo humanismo de Daniel, sob o rosto branco e o gorro espesso, com suas breves confissões sobre a mulher falecida. É um homem que ainda escreve à mão.

O protagonista é o derrotado que não se entrega: ao longo de Eu, Daniel Blake, ele precisa vagar em busca de um emprego, mas não pode trabalhar. A situação chega assim a algo insano: para receber o apoio do governo, ele deve provar que está procurando emprego, mas, como aconselham os médicos, não pode trabalhar.

Nessas caminhadas, ele esbarra em Katie (Hayley Squires), outra na fila por ajuda, ou na fila dos espaços de caridade em que algumas poucas almas boas prestam ajuda com comida e talvez um gesto de afeto, algo que Daniel estará disposto a ceder.

Com Katie há uma relação de amizade. Nem mesmo um momento de aproximação maior – quando ele descobre que ela tornou-se prostituta – será capaz de retirá-los desse estado, ou de arrastá-los à separação. Daniel é obrigado a entender o sacrifício de Katie, o pedido para que o mesmo afeto não atrapalhe sua tentativa de ganhar dinheiro.

É o que há de mais triste nesse filme visivelmente frio: a inclinação ao afeto tornará mais difícil a vida de todos. O sistema que os cerca não suporta o afeto, em um tempo em que cidadãos são transformados em números, em clientes, em dados de um computador que mede a despesa e o lucro de cada um, sempre aos olhos de profissionais com discursos prontos para pessoas simples como Daniel Blake.

(I, Daniel Blake, Ken Loach, 2016)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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