O Rio de Janeiro é um canteiro de obras. As crianças perdidas quase desaparecem entre máquinas, tapumes, de um lado para outro, em busca da mãe. Campo Grande, de Sandra Kogut, insere outra questão além do tema do abandono: esses seres perdidos tornam-se partículas à margem do progresso mecânico que pede passagem.
O que explica, ao longo do filme, a dificuldade das crianças em se relacionar e fazer parte do mundo adulto. O contrário também se aplica. Esses lados, com exceção da parte final, quase sempre não se encontram, não dialogam, e isso alimenta o drama.
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A pequena Rayane (Rayane do Amaral) é deixada na porta de um prédio apenas com um bilhete. Sozinha, ela chora e é acolhida por uma mulher que vive no local. Suspeita-se que a mãe das crianças tenha alguma relação com a dona do apartamento. Logo em seguida surge o irmão um pouco mais velho, Ygor (Ygor Manoel).
Em boa parte dessa história de sons urbanos e olhares atravessados, o espectador volta-se ao ambiente infantil, às pequenas conversas e brincadeiras às quais os adultos nem sempre – ou quase nunca – têm acesso. Campo Grande é sobre o choque do mundo adulto com o infantil, também sobre como as crianças sobrevivem em reclusão.
Algumas das melhores passagens apresentam esse contato, a fala baixa do irmão para a irmã, ou mesmo a naturalidade, ao fim, com que Ygor abraça Rayane, ao se encontrarem em um abrigo municipal para crianças. Essa naturalidade, feita com certa distância, apresenta o que aqui há de melhor: as crianças são tratadas como crianças.
Nem sempre é assim no cinema. No período clássico, quase nunca. O grande cineasta François Truffaut certa vez escreveu que “há um certo número de filmes com crianças, mas poucos filmes sobre crianças”. Nem todos oferecem esse acesso à “verdade” infantil, mesmo quando os pequenos estão interpretando. Parece ser o caso aqui.
Continua Truffaut: “Como as crianças trazem consigo automaticamente a poesia, creio que convém evitar introduzir elementos poéticos num filme de crianças”. Na maior parte de seu trabalho, talvez seguindo os passos do francês, Kogut reserva à câmera alguma distância, o poder do registro. Momentos de drama dispensam essa “poesia”.
O filme pode parecer frio em certas passagens. Talvez pela necessidade de não separar nunca o drama individual do efeito físico da grande cidade sobre todos, da metrópole impessoal que se refaz apenas sob o som das máquinas e do trânsito constante.
Há ainda o drama da mulher (Carla Ribas) separada do marido, a quem as crianças são deixadas. Mais de uma vez, é vista com roupas íntimas, sozinha, como se a exposição física nunca fosse suficiente para compreendê-la. Ainda assim, não é difícil enxergar os responsáveis pela dor das personagens: distância, isolamento e ausência materna.
(Idem, Sandra Kogut, 2015)
Nota: ★★★☆☆
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