Um infarto, crê o protagonista de Belos Sonhos, teria matado sua mãe. A fatalidade ocorreu quando ele ainda era uma criança. Em seu quarto, à noite, ele é acordado subitamente por um estrondo. O pai sai do apartamento, quase não consegue encarar o filho. Sem esforço, o espectador entende que não se trata de um infarto.
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Antes de morrer, a mãe (Barbara Ronchi) teria desejado “belos sonhos” ao filho, mas o que vem a seguir – pelo resto da infância, pela adolescência, depois pela vida adulta – é a incompreensão. Massimo não aceita a morte e não consegue seguir em frente.
O filme de Marco Bellocchio é sobre essa relação estranha, mais tarde transformada em ódio. Morrer vítima de um problema cardíaco talvez indicasse, fosse verdade, o excesso de amor, o problema que ataca o mais nobre dos órgãos. E a mãe seria a vítima perfeita.
Interpretado na vida adulta por Valerio Mastandrea, Massino não consegue manter relações de intimidade com outras parceiras. Em uma festa, a certa altura, o beijo em outra mulher é distante. Seu desafio é ultrapassar esse limite, revelar sentimentos.
Na infância, assiste a filmes de terror com a mãe, enquanto esta chega a tapar seus olhos. Ela também tem medo do que surge na tela. Com a mãe ele está protegido: perto do fim, Bellocchio conduz à sequência que resume a obra, quando o pequeno Massino é levado pela protetora a se refugiar em uma caixa de papelão, estando em seus braços.
A vida adulta e real é outra: a personagem começa a perceber que o afeto foi embora. E o afeto de outras mães – como a de um amigo, vivida por Emmanuelle Devos – pode ser repelido. O protagonista assusta-se e não entende o motivo desse ato.
Belos Sonhos é sobre o amor de mãe. E é sobre a luta desse menino, depois do homem, para sair daquela mesma caixa na qual a mãe colocou-o. Sem ela para libertá-lo, sem sua despedida (ela morreu enquanto ele dormia), não é possível seguir em frente.
Por outro lado, Massino está no limite entre as sombras da caixa e o mundo externo, entre a infância de acolhimento e o mundo adulto marcado pela frieza, pelo choque de realidade. Ou seja, em uma zona que o impede de se definir, de se realizar, até mesmo de se liberar – como na sequência da dança – e então experimentar outros sentimentos.
Não à toa, ele terá de culpar a própria mãe quando o verdadeiro motivo de sua morte vem à tona. Como pôde deixa-lo? Ou, se a despedida é verdadeira, como pôde desejar ao garoto “belos sonhos” quando o que viria a seguir seria o contrário?
Uma das passagens da vida de Massimo mostra a chegada ao antigo apartamento em que viveu sua infância. O apartamento, como em Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, carrega toda sua lembrança, toda a vida passada e o trauma da noite do estrondo.
Terá de retirar as antigas peças do local. Tudo desarrumado, lembranças transpostas a objetos, fotos, álbuns. Tudo remete à infância, à perda, ao passo que Bellocchio – entre diferentes tempos – não perde nunca o controle desse grande drama italiano.
É sobre a memória, de novo. A memória de um homem preso, irrealizado, alguém levado a situações pouco confortáveis, como a cobertura dos conflitos de Sarajevo em 1993. Por ali, entre a guerra, ele vê o momento em que o amigo fotógrafo fabrica uma imagem ao colocar um garoto ao lado de uma mulher assassinada.
Talvez a mulher seja a mãe do menino que passa o tempo em jogos eletrônicos. Talvez não. A imagem tem seu significado: é, para ratificar a situação do protagonista órfão, o resumo desse mundo real e cruel, distante de seus belos sonhos.
(Fai bei sogni, Marco Bellocchio, 2016)
Nota: ★★★★☆
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