Em Os Pássaros, de Alfred Hitchcock, os homens apenas vagam de um lado para o outro, fundamentais mas sem expressão. O homem ao centro é o advogado vivido por Rod Taylor, Mitch Brenner.
A rica e um pouco aventureira Melanie Daniels (Tippi Hedren) vai atrás dele em uma pequena cidade na qual cada centímetro remete a um mundo passado, com gente pacata e conservadora, nada a ver com a loura atrevida da cidade grande.
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Com ela vem a fúria da natureza, os pássaros. E a mulher, coitada, leva o mal ao grupo de pessoas. A cidade transforma-se em palco de destruição, pavor, com doses de ação e suspense controladas com maestria por Hitchcock.
O filme assume contornos bíblicos, com a mulher entre destruição, proibição e mudança. Impossível, por exemplo, não se ater ao olhar daquele velho senhor de um pequeno mercado, a quem Melanie pede ajuda ao chegar à cidade. É o velho americano desconfiado frente à modernidade feminina.
Para Hitchcock, a mulher traz diferenças, sendo também a rival e a dominadora. Aqui, Melanie tem concorrentes de peso.
A figura da mãe
Mitch tem uma mãe desconfiada. Ao ser apresentada a Melanie, nota-se o desconforto dela: a ideia de que pode, àquela altura, perder o filho definitivamente para a cidade grande. Talvez, acredite a mãe, ele não volte à pequena cidade, à sua casa à beira do lago, ao clima interiorano de todos os fins de semana.
O que se vê é o risco em mudar hábitos. Hitchcock apresenta, visualmente, essa luta da mãe para estar entre a nova loura, a nova mulher, e o filho desinteressante. Em uma sequência-chave, ela atende ao telefone enquanto os novos amantes estão ao fundo, um de cada lado. Jessica Tandy interpreta essa mulher com perfeição.
Nessa mesma sequência, o homem muda de lugar no espaço, vai ao outro ponto da sala, desloca-se como se já deixasse claro estar em busca da outra mulher.
A professora
Naquela mesma cidade há o contraponto a Melanie: a professora de cabelos pretos que cultiva o hábito de limpar o jardim, Annie Hayworth (Suzanne Pleshette). Por trás dela, de seu rosto aparentemente frágil, corre uma história – e Hitchcock permite que corra.
Talvez deseje ser o que representa Melanie: a mulher emancipada, com o direito a sair em busca de seu homem sem que isso gere constrangimento. Os lados são invertidos. Também as cores. Seus cabelos pretos indicam a mulher fria, impedida de ser vista por Mitch, ou mesmo retornar para seus braços. Está presa àquela cidade, àquele estado de vida, a ser o que Melanie não é.
O filme representa a oposição perfeita quando elas estão à porta, uma de cada lado, com um pássaro morto ao chão. A mulher passa por uma transformação. O pássaro é um aviso do mal: a passagem da morena presa à loura liberta.
Há, para Hitchcock, a vingança da natureza – e é provável que isso esteja também na obra que deu origem ao filme, assinada por Daphne Du Maurier. Spielberg entendeu esse espírito em Tubarão, quando, na abertura, o monstro representa também uma vingança da natureza – ou de Deus, de um velho mundo – contra a modernidade dos jovens em busca de sexo à beira-mar, que nadam nus e cantam.
Se a mãe de Tandy não pode dividir o filho com mulher alguma, tampouco a professora poderá se libertar de sua prisão. No fundo, essas pessoas estão em suas próprias gaiolas, em suas vidas comuns – até surgir a moça loura íntima às fofocas de colunas sociais.
Melanie pertence a uma nova espécie, gera atração em todos ao redor, representa o desejo, o passo à frente. Difícil é escapar da grande gaiola.
(The Birds, Alfred Hitchcock, 1963)
Nota: ★★★★★
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