O primeiro conto é sobre a maternidade, o segundo sobre a juventude, o terceiro sobre a liberdade – ou sobre o aprisionamento. Em todos, dois reis e uma rainha flertam com a monstruosidade. O poder aproxima-se do repulsivo.
O que fica claro em uma das imagens conhecidas de O Conto dos Contos, de Matteo Garrone: a bela rainha de Longtrellis (Salma Hayek) devora o coração de uma fera. Segundo um bruxo, se seguir alguns de seus ensinamentos ela poderá realizar seu grande sonho: ser mãe. A maternidade, nesse caso, ligada ao poder.
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A fera gera dois filhos. O segundo sai do ventre de uma plebeia, como se seres idênticos fossem possíveis em polos distantes, ou aparentemente distantes. Essa união torna-se um problema, no futuro, para a rainha: seu filho ama mais o duplo do que ela própria. Está disposto até mesmo a escapar de um labirinto para estar com o outro.
Os três contos correm em paralelo. O segundo, sobre a juventude, leva ao rei de Strongcliff (Vincent Cassel), que precisa se alimentar de juventude. É mais mulherengo do que poderoso. E quando fica frente a frente com uma mulher mais velha, talvez uma bruxa, logo pede que seus soldados lancem essa personagem pela janela.
É que ele teve de passar uma noite com ela. Não poderia imaginar que a mulher fosse tão feia, ou tão deformada. Ela entrega-se no escuro, única condição para invadir o quarto do rei. Ele aceita e depois não suporta o que a luz revela-lhe na manhã seguinte.
Mas a bruxa logo se torna bela, de pele perfeita, à qual as curvas da ninfeta Stacy Martin cabem à perfeição: com cabelos vermelhos e longos, nua em uma floresta, torna-se a personificação da busca do rei: a beleza e, claro, a juventude.
Na incursão de Garrone pelo poder em excesso, até chegar ao grotesco, o absurdo faz-se presente. Sempre entre belezas, grandes palácios, artistas circenses que divertem os poderosos e labirintos que dão a ideia de um mundo como tabuleiro.
Há ainda a história de um terceiro rei, no conto sobre liberdade. O pequeno líder, o rei de Highhills (Toby Jones), não deixa a filha se casar e, certo dia, fica fascinado por uma pulga. O parasita chupa seu sangue. O rei permite. E mais: passa a alimentar o animal para que cresça, tratado como um cão que dorme em seu quarto.
A pulga é vítima de sua própria condição, vivendo apenas para se alimentar. Sintomático que nesse filme sobre poder e tantas coisas grotescas, a partir do livro de Giambattista Basile, o rei pareça preferir o parasita à bela filha aprisionada no castelo.
E, quando resolve casá-la, colocará antes sua condição: o noivo terá de descobrir que animal é dono do grande couro branco exposto em uma das salas do castelo, onde súditos e pretendentes amontoam-se para cheirar essa peça vinda da pulga.
É pelo absurdo que este filme estranho, não menos belo, chega ao espectador: suas personagens sempre tomam novos rumos, lambuzadas de sangue, em um universo fantástico de dragões, grandes morcegos, bruxas, ogros e artistas itinerantes.
O coração da grande besta, no início, continua a bater mesmo fora do corpo. A rainha leva-o ao castelo como objeto precioso, enrolado em um pano. Será seu banquete, na mistura do ambiente branco com o vermelho do sangue e da carne.
(Il racconto dei racconti – Tale of Tales, Matteo Garrone, 2015)
Nota: ★★★☆☆
Veja também:
Jules e Jim – Uma Mulher para Dois, de François Truffaut