As mulheres possuem consciência em Amarga Esperança. Os homens quase sempre surgem vazios. Essa característica confere ainda mais importância ao filme de Nicholas Ray, com jovens pistoleiros que antecipam Mortalmente Perigosa e Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas – nos quais as mulheres têm mais peso.
Cathy O’Donnell, não à toa, é o primeiro nome nos créditos – tal como Ida Lupino em O Último Refúgio, um filme de homens com um cão simpático e feito anos antes. Ray dá-lhe peso, amostra de que àquele mundo bandido – com o olhar da dama, que inclusive fecha o filme com grandeza – há sensibilidade e paixão feminina.
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É a mulher responsável por resgatar o rapaz à noite, com o pé machucado, após ele sair da prisão e esperar por ajuda. Por ali ronda um cão, animal que simboliza a vida dos amantes, vista depois.
O filme retoma o sentimento visto em Vive-se Uma Só Vez, de Fritz Lang, história de amor entre criminosos em um mundo de injustiças. Ray amplia a abordagem a partir da obra de Edward Anderson (mais tarde levada às telas por Robert Altman). Enquanto homens discutem um assalto a banco, enquanto trocam olhares com ódio a saltar pela saliva, é a terna Keechie (O’Donnell) que traz consciência.
Guia ao anti-herói, ao rapaz sem emoção de Farley Granger, automático, magro, belo, às vezes simplista, sem o ar destrutivo visto mais tarde em outros pistoleiros. Granger cairia melhor ao estilo afundado em dubiedade sexual nos filmes de Hitchcock, como o assassino de Festim Diabólico, ou como o jovem rico envolvido em uma trama de crimes trocados em Pacto Sinistro.
Em Amarga Esperança, o rapaz ainda guarda caráter e bondade. É o que faz Keechie sentir-se atraída: uma visão diferente entre tantos homens sujos, desleixados, como o pai, um embriagado. Os dois companheiros de Bowie (Granger) rascunham o que se espera desse contraponto entre sexos: o inferno, a escória.
Keechie oferece o outro lado: esperança, casamento, o filho – a porta ao mundo que ambos estranham e até rejeitam a determinada altura. Essa história de fuga a dois, com polícia no encalço, é fruto da Depressão, como outros filmes de temática semelhante.
Ao fim, Ray expõe o rosto enigmático da moça que descobre o amor, em meio ao gesto trágico, em meio à covardia dos policiais, enquanto ambos – ele e ela – encontram-se sob as sombras das árvores, à noite, entregues por outra mulher, a traidora Mattie (Helen Craig).
A versão de Altman, Renegados Até a Última Rajada, é mais crua, com personagens distantes. Nela, subverte-se o drama clássico do qual Ray, até certo ponto, não pôde se despregar. Ambas belas e diferentes. Ray aposta no romance e na aventura. Altman prefere um retrato da Depressão, com um dos encerramentos mais poderosos do cinema americano nos anos 1970. O que Ray deixa é um rosto e, com ele, um resumo: todas as amarguras, as dores e, talvez, o renascimento da menina que saiu de casa para amar e encontrou o mundo adulto.
(They Live by Night, Nicholas Ray, 1948)
Nota: ★★★★☆
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