São raros os filmes sobre Jesus Cristo – ou mesmo voltados à religiosidade em geral – que conseguem ganhar o reconhecimento de religiosos e ateus. Com certo louvor, Últimos Dias no Deserto pode conquistar esses dois lados ao revelar, antes, o Cristo humano, o homem longe de contornos míticos, do ser idealizado.
Mostra o bem e o mal, com o mesmo ator para Cristo e para o Diabo. Esse “homem santo”, assim chamado por outro, é interpretado por Ewan McGregor. É o tipo de ator que saber ser santo e demônio, bom e mau. Consegue convencer nas duas faces: na dúvida do Cristo pensativo, no sorriso cínico e delirante do Diabo.
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Aos ateus, outra via – não menos interessante – se impõe: não seria esta, também, a história de um homem dividido, que tenta encontrar algo que não pode tocar? Seria, talvez, a história de um louco imerso em sua crença e que encontra, ao fim, apenas a própria imagem invertida, seu reflexo indesejado? Carrega em si Deus e o Diabo.
A ficção aceita tudo. Resta à forma do filme materializar suas ideias. Últimos Dias do Deserto ultrapassa Cristo: pode ser fascinante ao ateu, um pouco frio e distante à mentalidade religiosa. E um trabalho do tipo sobre Cristo sem este por completo sugere que o homem importa mais que o santo. O caminho do deserto – pelo vazio, despido dos vícios da civilização – serve a qualquer um em busca do próprio interior.
“O deserto priva-lhe de suas vaidades, suas ilusões e dá-lhe a oportunidade de ver a si mesmo como é”, explica o pai de família que o protagonista encontra, interpretado por Ciarán Hinds. O deserto tem seu simbolismo próprio: é o desafio a ser atravessado.
Cristo é seguido por seu duplo. No início há apenas essa companhia pouco agradável, a lhe pregar peças, como miragem, ou materializada em uma bruxa com sede. O caminho pelo deserto seco tem seus obstáculos apesar de parecer nada, vazio. Cristo jejua.
Mais tarde, ele encontra uma família. O pai rígido, o filho (Tye Sheridan) que deseja ir embora, a mãe doente (Ayelet Zurer). A representação não escapa: a mãe que toca o filho com amor difere-se do pai, que pouco fala com o garoto. Prefere dar ordens. Ainda assim não é injusto. Cristo assiste aos dramas do trio, tenta não intervir.
A família dá a ideia de estabilidade contra o homem que caminha pelo mundo, sem raízes. Ao lado do pai e do filho, o protagonista ergue um pequeno muro de pedras: trabalham nessas rochas o tempo todo, único material do qual podem viver em local tão seco. A simples arquitetura, de pedras empilhadas, contrapõe a ondulação do deserto.
O diretor Rodrigo García, também autor do roteiro, não faz do homem santo um herói. Prefere a dúvida que carrega, a maneira como questiona o próprio Diabo (sua própria imagem) sobre Deus, e como o inimigo tenta dobrá-lo com truques e argumentos.
À frente, García volta ao mesmo deserto, dessa vez sem sua personagem central: o espectador defronta-se, enfim, com os espaços antes percorridos, com o vazio, a aparente falta de vida, algo que séculos não conseguiram modificar. Para alguns, um amontoado de rochas, labirinto vazio; para outros, um lugar santo.
(Last Days in the Desert, Rodrigo García, 2015)
Nota: ★★★☆☆
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