Aquarius, de Kleber Mendonça Filho

Os momentos em que Clara (Sonia Braga) sacode os cabelos, ou apenas os solta, representam alívio. Em Aquarius, ela abre-se ao mar, de sua janela, ainda no início – momento em que lança os cabelos para baixo e relaxa.

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O movimento é um respiro, seu primeiro sinal de resistência: no passado, como o espectador descobre, ela viveu com os cabelos curtos quando teve de enfrentar um câncer. O primeiro sinal de vida dá-se pelos cabelos longos.

Sobrevivente não só do câncer, mas de uma época: Clara ainda preserva seus antigos discos de vinil, suas antigas caixas de som, móveis, fotos e, claro, o apartamento. Não deseja mudar: todo esse espaço preserva sua vida, sua memória.

O confronto com a construtora que deseja comprar seu apartamento, o único ainda ocupado nesse prédio de contornos antigos, expõe dois tempos. Ainda assim, algumas práticas são antigas: os donos do poder, como os velhos coronéis (mas de fala mais baixa, de aparência amigável), têm meios para tentar expulsá-la do imóvel.

Desejam derrubá-lo, erguer outro. Mudaram o nome, depois recuaram: optaram mesmo por Aquarius, preservando apenas o título, o que talvez gere certa nostalgia – ainda que ninguém pareça dar a mínima, senão Clara, ao passado que reproduz.

É no combate ao câncer, tão perto da morte, que ela entende a importância de resistir àqueles homens, ao jovem com rosto de príncipe (Humberto Carrão) que estudou fora e, sorridente, impõe-lhe as regras do mercado: comprar, destruir, reerguer, vender.

O espaço de Clara é outro. Seu apartamento é mais que paredes e objetos, seu valor não pode ser calculado. O público descobre sua riqueza no início, no passado, quando Clara participa da festa de aniversário de sua tia Lucia (Thaia Perez), de cabelos brancos.

Enquanto todos prestam homenagens à aniversariante, o olhar de Lucia volta-se a um antigo móvel encostado na parede. O passado retorna: a jovem Lucia faz sexo com um homem, em momento de libertação, de claridade.

O móvel, o apartamento e todo seu espaço são mais do que parecem ao olhar desavisado: são representações da memória viva. Clara, por consequência, é o passo seguinte, e talvez o último. Talvez seus filhos, como indica um deles, Ana Paula (Maeve Jinkings), não estejam mais interessados nesse estado passado.

Por sinal, Ana Paula sequer percebe a nova pintura do prédio. Os visitantes passageiros, automáticos, não se prendem a detalhes. O recorte de um jornal com uma matéria sobre John Lennon, encontrado por Clara, carrega uma história que até ela desconhece. É o objeto perdido o indicativo dessa história – e é isso que importa.

Em suma, os outros – mas não todos – perderam a capacidade de “enxergar” o passado, ou apenas encontrá-lo em detalhes, no chamado “velho”. E isso talvez explique a emoção de Clara ao ouvir a música colocada por uma garota, em visita ao Recife, alguns dias em seu apartamento, na companhia de seu sobrinho.

Como em O Som ao Redor, o diretor Kleber Mendonça Filho constrói uma obra à beira do terror. O mistério é próprio do meio, da cidade, de tudo o que parece comum a todos, cuja esquisitice foi assimilada. Nada é mais estranho porque tudo é.

Menos para Clara, que ainda repousa no passado, que encontra o maior no menor. E, ao contrário de O Som ao Redor, feito da teia de personagens, Aquarius tem em Clara seu ponto central, personagem cujo câncer retorna em sonhos, a certa altura, acompanhado da empregada negra que trabalhou em seu apartamento, acusada de roubar.

A segurança traduzida pelo salva-vidas (Irandhir Santos) não traz garantias. O mar ao qual Clara abre-se, da janela, no início, ainda guarda tubarões. Transformam-se, mais tarde, e em silêncio, nos cupins. Os verdadeiros monstros são como cânceres, difíceis de ver, penetrados como estão no interior de todos. Só resta resistir.

(Idem, Kleber Mendonça Filho, 2016)

Nota: ★★★★☆

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