A personagem de Ingrid Bergman adianta, em Quando Fala o Coração, que não poderia amar um assassino. No filme de Alfred Hitchcock, o suspense não sacrificará a história de amor, e o faro da bela protagonista não engana – mesmo quando seu par amoroso assume a identidade de um homem morto.
O suspense acompanha a história de amor e, em sonhos, as distorções da obra de Salvador Dalí. Constance Petersen (Bergman) é psicanalista em um hospital voltado a pessoas com distúrbios mentais e se vê apaixonada pelo novo diretor da instituição – um pouco jovem, como comentam todos, para assumir tal cargo.
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Ele, mais tarde revelado John Ballantyne (Gregory Peck), toma a identidade de um homem que acredita ter matado. Sequer sabe a real circunstância do caso, que envolve a morte do verdadeiro diretor da clínica. É uma das histórias de Hitchcock na qual um inocente acaba tragado a um redemoinho de aventuras e descobertas.
E o clima remete aos seus suspenses de espionagem dos anos 30. Difícil não pensar em Os 39 Degraus, com seu herói acidental, com personagens coadjuvantes sempre suspeitas. Qualquer passo ou entrada em novo cômodo carrega apreensão.
Apaixonada pelo homem perturbado, com amnésia e suspeito de assassinato, Constance resolve tomar o caso: torna-se ao mesmo tempo sua salvadora e amante. Explicar suas atitudes pela via racional não funciona. Em meio a Freud e Dalí, sempre se deixa levar pelo inexplicável, e a aventura torna-se um suplemento estranho.
A heroína transforma-se ao longo da história. Ao se entregar a John, Constance deixa de usar seus óculos. Quando precisa se esconder, mostrar seriedade ou se tornar outra pessoa, logo coloca o objeto na face. A metamorfose é evidente. O recurso funciona.
Se o labirinto de John é demarcado aos poucos, as divisões dela estão às claras: personagem mais interessante, a moça refugia-se nos óculos, tenta escapar das portas que levam ao seu interior: veste então a máscara da doutora séria e irretocável.
Quando a heroína entrega-se ao amante, na bela sequência do encontro de ambos no quarto dele, a imagem do casal é mesclada às imagens das portas que se abrem. E, à frente, quando John é preso, o rosto dela é fundido à cela da prisão.
A personagem de Peck não tem rumo, não se quer mostrar. Sua fuga é o desmaio. A de Bergman é força pura, com sua deliciosa lição: é sempre necessário forçar máscaras para seguir jogando esse estranho jogo, entre crimes e psicanálise.
Longe do melhor exemplar hitchcockiano, Quando Fala o Coração ainda assim tem momentos sublimes. As sequências na casa do amigo de Constance estão entre as melhores, como a passagem em que John desce as escadas carregando a navalha. A câmera põe o objeto em destaque, em plano detalhe para evidenciar o perigo.
Poucas vezes Bergman pareceu tão linda, e poucas vezes sua face foi tão bem explorada. Com o olhar à câmera, fundido à cela da prisão, ou mesmo voltado ao amante, ela diz (não em palavras) o que já se sabe: seu grande amor não é um assassino.
(Spellbound, Alfred Hitchcock, 1945)
Nota: ★★★☆☆
Veja também:
Ladrão de Casaca, de Alfred Hitchcock