O Jardim das Delícias, de Silvano Agosti

Das telas de Bosch ao casamento, depois à clausura dos primeiros dias em lua de mel, O Jardim das Delícias leva aos transtornos de um homem. Ao fundo, os detalhes que o recobrem: as dúvidas sobre o casamento, o medo do sexo com a mulher grávida, a atração pela bela vizinha de quarto, o olhar ao menino atrevido que observa as pernas de sua companheira, a ligação com a religião e com a infância.

A obra do italiano Silvano Agosti, tal como a de Bosch, mescla passagens que levam ao paraíso, ao jardim e ao inferno. É por ali que transita o médico que acabou de se casar, Carlo (Maurice Ronet), e sua mulher grávida, Carla (Ida Galli). O aparente início de uma vida agradável é o que parece: aparência.

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jardim das delícias

O Jardim das Delícias utiliza o fracasso da vida a dois e a impotência do protagonista para fazer também uma crítica à Igreja. Um filme nascido de sua época, da contestação e dos contornos libertários da obra de Bosch – religiosa e, ao mesmo tempo, questionadora.

A primeira imagem apresenta a noiva, com o olhar à câmera, véu pelo rosto, com a mordida em uma fruta. A mensagem é clara: depois do fruto, a saída do paraíso. O casal terá de descobrir – logo cedo, na primeira noite a dois – a dificuldade da união.

Ele deita, tenta dormir. A mulher vai ao banho, coberta de sabão, e acaricia a barriga. Ele, no fundo, deseja consumir o sexo e, ao que parece, sente-se culpado, talvez impedido pela gravidez. Levanta da cama durante a madrugada, sai para fumar, retorna. Não sabe o que fazer. Para piorar, a descarga do vaso sanitário está com problemas. Vai ao banheiro e faz de tudo para evitar o barulho da água.

Em uma de suas saídas, Carlo encontra uma bela vizinha de quarto, apenas alguns metros à frente. Não tem nome, não precisa ter. Tem suficiente beleza e é interpretada por Lea Massari. Seu rosto evoca mistério, atração e, em O Jardim das Delícias, a passagem para outro universo no qual o sexo é liberado.

O quarto ao lado é um novo mundo descoberto, confronto à fidelidade religiosa. Como na obra de Bosch, pouca distância separa o paraíso do inferno. O homem, entre lados, nega a criança obediente que foi um dia, confrontada pelo padre gordo e mandão.

jardim das delicias2

Na infância, Carlo deixou traumatizada a pequena irmã quando se trancavam em cômodos, longe dos pais, para brincar de padre e discípulo, para imitar a Igreja. A mulher do quarto ao lado, portanto, pode ser a irmã e a concretização do velho desejo, um duplo pecado.

Em outra sequência-chave, delirante, um grupo de rapazes dança no paraíso que, ao olhar da Igreja, pode ser o inferno. Ao mesmo tempo, uma fila de coroinhas passa pela montanha, perto dali, como obedientes discípulos de Deus. Os rapazes espalham-se. Os coroinhas são crianças guiadas de um ponto a outro, ovelhas do rebanho.

No hotel, Carla passa mal. Carlo desloca-se, reencontra a vizinha. Com o rosto de Ronet, o suicida de Trinta Anos Esta Noite, ele entrega um homem em dúvida. À época, Carlo era o homem da revolução interna, em luta contra si próprio para lutar, depois, contra a família, a Igreja e qualquer forma de ordem. Seu drama é estar preso ao jardim de delícias e pecados – e, por consequência, ter perdido o paraíso.

(Il giardino delle delizie, Silvano Agosti, 1967)

Nota: ★★★★☆

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