Em tempos de Brexit, em que nacionalistas xenófobos pregam a separação, vale a pena retornar à Trilogia das Cores, do mestre polonês Krzysztof Kieslowski. De início, não se tratam de obras centradas em questões sociais. No entanto, aos poucos elas ganham inevitável espaço com personagens de diferentes nacionalidades e barreiras da língua.
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Uma trilogia que marca o bicentenário da Revolução Francesa, para Kieslowski, é a saída para discutir temas variados, sempre pelo viés humano e com dilemas morais – como se viu na extraordinária série O Decálogo. A trilogia também é o último trabalho do diretor e seu legado. Ele morreu em 1996, dois anos depois de terminar A Fraternidade é Vermelha. A lista abaixo contém spoilers.
A LIBERDADE É AZUL
Música opressora
Julie (Juliette Binoche) luta para escapar do passado, da morte do marido e da filha. Ela é a única sobrevivente de um acidente de carro. Esse é seu desejo de liberdade. Entre vários sinais do marido, sua música sempre retorna. Torna-se opressora. Para escapar dela, Julie joga uma partitura no caminhão do lixo. Kieslowski prende-se alguns segundos à sua face, mistura entre ódio e satisfação.
Absorção do mundo
Momento aparentemente pequeno, rápido, mas de grande representação: em um filme sobre a luta para se afastar do mundo ao redor, da história passada que sempre se manifesta, tudo (ou quase) retorna à protagonista. Ela sempre termina a absorver o que está ao redor. Descobre que será impossível negar esse universo. Acaba impregnada. E Kieslowski representa isso com um cubo de açúcar impregnado de café.
Encontro com a amante
Perto do encerramento, Julie descobre que o marido falecido tinha uma amante (Florence Pernel). A mulher está grávida e lhe diz que pensava em abortar. Só decidiu ter o filho porque o homem morreu. A situação remete a outro filme de Kieslowski: em Decálogo: Dois, da série sobre os Dez Mandamentos, uma mulher vive dilema semelhante: só terá o filho do amante caso o marido, hospitalizado, não sobreviva.
A IGUALDADE É BRANCA
Diálogo impossível
A situação do protagonista, Karol (Zbigniew Zamachowski), é desagradável: sua mulher francesa (Julie Delpy) o deixou sem nada e não mede esforços para humilhá-lo. Ele, cabeleireiro polonês, tem de retornar para seu país e, tomado pelas benesses do novo capitalismo, resolve se vingar da ex. A cena em questão é poderosa, quando as questões sexuais entre ambos são paralelas às questões da língua: há uma barreira que os afasta.
Tudo à venda
Com o capitalismo em ascensão, Karol descobre que tudo está à venda, até a vida humana. E, para ajudar um amigo (Janusz Gajos), resolve satisfazer seu desejo: matá-lo. O trabalho inglório, contudo, faz com que o protagonista questione o outro: primeiro com uma bala de festim, depois com uma de verdade. Nesse novo mundo, talvez seja possível fazer escolhas. Em seguida, eles escolhem celebrar a vida.
Reencontro
A segunda parte da trilogia também revela uma estranha história de amor. Não há dúvidas de que Karol ama Dominique (Delpy), mas o contrário nem sempre é claro. Para dar vez à vingança, arma um plano para reencontrar a mulher. Como sabe da possibilidade de comprar a morte, compra a própria. E retorna para mostrar que o fim das barreiras entre ambos é possível: ele é sexualmente potente e fala francês.
A FRATERNIDADE É VERMELHA
“Só falta parar de respirar”
É o que diz Valentine (Irène Jacob) ao juiz aposentado vivido por Jean-Louis Trintignant, ao se encontrarem pela segunda vez. Ela, modelo que vive em Genebra, atropelou a cachorra dele. Por consequência, descobriu um homem solitário, amargo, que vigia seus vizinhos por meio de ondas de rádio. Mais uma vez, Kieslowski discute o destino e a dificuldade de unificação entre seres aparentemente diferentes.
A vida dos outros
Invadir a vida dos outros, entrando em suas casas e espaços privados, sempre traz consequências. Valentine é confrontada por isso. E de opostos (de novo) centra-se o drama de Kieslowski. No novo encontro entre o casal, ele relata que costumava invadir a vida alheia de outra forma. Era um juiz. Em seu antigo trabalho, diz que não sabia se estava vendo o lado certo ou errado. Ao espionar os outros, busca corrigir isso.
O sonho
Em outro encontro, após um desfile, a modelo pede que o juiz conte-lhe sobre seu sonho. Ele narra a vida dela com 50 anos, na companhia de um homem. E o personagem do sonho pode ser o próprio juiz. Kieslowski, em paralelo, conta a história de outra personagem em A Fraternidade é Vermelha, um jovem que tenta se tornar juiz. Destino ou não, com a mão ou não do velho senhor, mais tarde ele encontra Valentine.
Unificação
Nada é por acaso na trilogia, escrita por Kieslowski em parceria com Krzysztof Piesiewicz. Ao fim da terceira parte, o projeto de unificação salta à frente. A união entre personagens é concretizada, mas talvez o naufrágio aponte à utopia. Dá-se justamente no Canal da Mancha, que une a França à Grã-Bretanha. Ainda assim, o naufrágio possibilita o encontro de Valentine com o jovem juiz – além de trazer de volta outras personagens da trilogia, todas sobreviventes.
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