Como sonâmbulos, ou às vezes estátuas gregas, as personagens de Glauber Rocha em O Leão de Sete Cabeças e Cabeças Cortadas não têm qualquer ambiguidade psicológica. Servem à mensagem política do diretor – contra a colonização, a favor da liberdade.
Glauber definiria seu cinema como uma amostragem da luta do homem pela liberdade, à contramão dos líderes poderosos. Tema comum em sua filmografia. O Leão e Cabeças Cortadas, feitos no período de seu exílio, retomam essa ideia.
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O prêmio de direção em Cannes pelo grande O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro valeu-lhe convites para filmar fora do Brasil. Tonou-se respeitado na Europa.
Foi ao Congo com atores prestigiados da época, como o francês Jean-Pierre Léaud e o brasileiro Hugo Carvana, para realizar O Leão. Como outros de seus trabalhos, a obra é carregada de fúria: as personagens não vivem, representam; não dizem palavras com naturalismo, apenas declamam discursos imbuídos de política, de destruição.
A primeira imagem mostra um guerrilheiro debatendo-se pelo desejo. Ou seria um soldado explorador? Tenta tocar o seio feminino, frente a frente com a bela Rada Rassimov, representação do capitalismo e seus desejos. Ele sofre, rasteja.
A bela faz com o homem, na abertura, o que fará com outro, mais tarde, o revolucionário capturado pelo pregador (Léaud) e uma das peças da revolução que, no encerramento, avançará à libertação do país africano em que se situa.
O cinema de Glauber em questão ainda usa a alegoria, mas é mais frio e distante se comparado às manifestações vistas em obras como Terra em Transe. Está mais próximo de Jean-Luc Godard, em sua fase politizada, no Grupo Dziga Vertov.
As representações são evidentes, em momentos são até mutáveis: os exploradores (alemão, português e americano); a bela Marlene, cujo nome remete ao cinema, a Dietrich, e ao fascínio pelo produto americano; o pregador com o martelo em mãos; o revolucionário enlaçado; o líder fantoche; e Zumbi, à frente do levante.
Todas as figuras encontram-se em cenários reais, com pessoas reais ao fundo, ao lado, gente simples que às vezes parece não compreender a encenação. Os exploradores, diz Glauber, ganham primeiro e depois se intoxicam com o poder, perdem-se logo.
Isso leva à sequência da exaltação do líder fantoche, vestido como colonizador inglês, no momento mais forte de O Leão: desfila entre os nativos, em um carro, ao som eufórico da multidão, enquanto o guerrilheiro, ainda preso, é exposto como animal.
Os conflitos ganham outro rumo: em um banquete canibal, os exploradores e seus asseclas alimentam-se sobre o corpo do negro detido. O fêmur, a marca da dominação do homem, seu maior osso, é conferido à personagem da bela Rada, e todos circulam aquele pedaço de gente como se fosse o bem mais precioso.
Glauber evita closes. Suas sequências são painéis com seres em movimento, em tom até mesmo teatral – o que se evidencia ainda mais, logo depois, em Cabeças Cortadas.
Feita na Espanha, a obra seguinte tem defeitos e qualidades em peso semelhante. Como a anterior, mas sem a mesma potência, não é para ser compreendida no sentido narrativo comum: não há uma história a ser contada. O que há são figuras que representam um pensamento político, figuras de uma ação política em cenário fictício.
A personagem política ao centro, verdadeira em sua representação, chama-se Diaz II (Francisco Rabal), produto de Terra em Transe, líder exilado, ao telefone (na verdade, dois), dando ordens àqueles que ficaram no outro país.
Suas raízes remetem a Eldorado, cidade fictícia, palco para golpes inesperados, para movimentos políticos canhestros, para líderes conhecidos da América Latina (em um tempo de governo militar no Brasil), com seus discursos e armas em riste.
Em um momento esclarecedor, Diaz rasteja pela lama. Animaliza-se. Deixa-se ver entre seus tesouros, atolado na sujeira, e chega mesmo a tentar consumi-la com os dentes. Passam por ele novas figuras que representam o painel de Glauber: um pregador com a foice, a camponesa, a esposa, os filhos, um médico e outros mais.
No encerramento de ambos os filmes, como costume nos trabalhos de Glauber, há a abertura ao indefinido. Ao mesmo tempo em que se avizinham resoluções, o desenrolar ainda segue incerto: em O Leão, os revolucionários armados continuam a marchar; em Cabeças Cortadas, a camponesa é coroada rainha, ou alçada à santificação.
Em seu delírio pelas ruínas do castelo, pelo cenário seco, Glauber flerta com Macbeth em Cabeças Cortadas, com seu líder moribundo, morto antes da hora. O poder é frágil. Os sinais da religiosidade são gritantes. Glauber é, de novo, um criador em fúria.
(Der Leone Have Sept Cabeças, Glauber Rocha, 1970)
(Cabezas cortadas, Glauber Rocha, 1970)
Notas:
O Leão de Sete Cabeças: ★★★★☆
Cabeças Cortadas: ★★★☆☆
Fotos 1 e 2: O Leão de Sete Cabeças
Foto 3: Cabeças Cortadas
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