A tentativa de se reinventar em outro local e esquecer o passado alimenta o drama de Nascido e Criado, do argentino Pablo Trapero. Seu protagonista acredita ter perdido a mulher e a filha em um acidente de carro. Sua escolha é fugir, tentar ser outro.
O filme apresenta seu fracasso: por mais que tente esquecer, fugir, esse homem continua preso às suas dores, à noite do acidente. Além do homem dividido, o filme de Trapero estabelece diferenças entre as duas vidas de sua personagem.
A primeira, no início, leva ao homem de família, com suas roupas limpas, sua bela casa, sua aparente vida perfeita. Há por ali o contato com a pequena filha, que logo cedo vai para a escola, também o sexo apaixonante com a mulher. Tudo se encaixa.
Vem o acidente, quando a família viajava de carro pela estrada. O estrondo leva ao corte, a luz é rápida, logo se é transferido para longe: o cenário passa a ser a Patagônia, em outra Argentina, com outro homem. Ou nem tanto.
Santiago (Guillermo Pfening) não é mais como antes, o design de vida feita. Tem, contra si, a natureza – a começar pela sua. E o cenário de maior parte do filme, com o horizonte em neve, reproduz frieza, distância, ao mesmo tempo a selvageria desse protagonista agora deslocado, o homem antissocial.
O título dá outra possibilidade à história: entre estar no mundo (nascer) e viver nele (ser criado) existe grande diferença. Ser criado é sempre mais difícil, e inclui a passagem para fora da redoma da vida segura, do bom trabalho, da família.
Ao escolher a fuga, o protagonista de Trapero escolhe, por irônico que possa parecer, a vida de mais dificuldade. Começa tudo de novo, como desconhecido, como funcionário em um aeroporto no qual quase todos estão de passagem. Seu mundo torna-se mais bruto, não menos impessoal. A seu favor há a proximidade dos colegas.
De quebra, não se livra do passado: acorda no meio da noite sob a influência das lembranças, digladia-se com si próprio, com seus demônios, ao correr pela mata e pela neve com a espingarda do amigo – quando havia acabado de aprender a manuseá-la.
Sua vida nova molda-se a outras aprendizagens, enquanto é perseguido pelas lembranças. Nesse ponto, faz pensar em A Liberdade é Azul, de Kieslowski. Em ambos, a liberdade – no sentido de uma vida distante da dor e do passado – é ilusória.
O colega de trabalho do protagonista é também desbocado e distante. Descobre que será pai. O anúncio é feito com estranheza. Pensa em não assumir a criança, depois acaba cedendo. Trapero continua a perseguir a ideia de vida e morte, ainda mais quando outro colega, velho homem que trabalha no aeroporto, está prestes a perder a mulher.
Nesse universo feito aos trancos, ao mesmo tempo suave, com a aparência de que nada ocorre, o drama custa a explodir. Trapero lida com o efeito menor, com a tentativa de bloqueio da personagem. Durante boa parte do filme, ele reluta a atender ao telefone, em saber o que ocorreu com a filha e com a mulher.
O bloqueio leva-o a incertezas. Prefere viver em dúvida. A certa altura, resolve escapar da redoma: descobre que, apesar do visual, continua o mesmo.
Nota: ★★★☆☆
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