A Trilogia da Vida, de Pier Paolo Pasolini

A liberdade dos filmes que compõem a Trilogia da Vida, de Pier Paolo Pasolini, tem explicação: para o diretor, o sexo – e, por extensão, a vida – não pode ser aprisionado. A ideia é recorrer a várias pequenas histórias, em três filmes, e mostrar sua atualidade.

O diretor banha-se em séculos anteriores, no homem divertido. Algo não mudou: esse homem aparentemente verdadeiro – alheio aos pecados em Decameron, disposto a romper com o bom-mocismo em Os Contos de Canterbury, ou mesmo vítima do destino em As Mil e Uma Noites – está sempre ligado ao desejo e à liberdade.

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Quando a Itália de Pasolini tornava-se uma sociedade de consumo desenfreado, entregue ao novo capitalismo nascente, o diretor retornava àquilo que parecia perdido, arcaico, àquilo que se traduzia em liberdade pouco conhecida à nova geração.

Nas três partes, reinam as pequenas histórias, com pequenas personagens e suas aventuras, suas escapadas que não incluem racionalização. Apenas vivem, pois o que resta – para além da ordem social e religiosa – é a aventura, a aparência do acaso.

Decameron, a primeira, a partir da obra de Giovanni Boccaccio, tem apenas uma personagem que recusa a comédia, com convicção de seu destino, de seu meio: é justamente o pintor vivido por Pasolini, que quase não fala, apenas age.

O artista, diz o cineasta, é o único, aqui, convicto de seus deveres, distante da tragédia e da graça do mundo, devido à sua imersão total ao afresco. Não responde à comédia, tampouco à tragédia: serve-se apenas da arte, vive dela e escapa às histórias.

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Pois será o mesmo Pasolini, o criador consciente para um mundo de personagens aparentemente sem consciência, o escritor de Os Contos de Canterbury, que ainda pode sorrir com suas criações, cujo valor da obra talvez não ultrapasse o divertimento.

A ordem não está acima dos desejos. É o que dizem as três partes, a começar por Decameron e suas histórias. A primeira mostra um rapaz que acredita ter encontrado a irmã, é traído por essa moça, roubado e termina no túmulo de um líder religioso católico. Resta-lhe apenas furtar o valioso anel do defunto.

Outros episódios continuam com o ataque de Pasolini à ordem religiosa, ou o simples deboche: em um deles, o pecador mente para o padre pouco antes de morrer e é convertido em santo; em outro, um rapaz finge ser mudo para se aproximar de freiras sedentas por sexo. Quando volta a falar, uma delas acredita se tratar de milagre.

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Não há ligação entre esses seres senão pelo confronto, ou, no que toca o interior do filme, pela liberdade. O ponto fora da curva é o pintor. Ao fim, ele exalta o poder do sonho, o quanto sonhar com a obra de arte pode ser mais doce que executá-la. E ele sonha: a certa altura, O Juízo Final, de Giotto, corta sua mente e é materializada com atores – entre eles, a bela Silvana Mangano.

Os Contos de Canterbury é igualmente livre e brincalhão, com doses de sexo e perversidade. Não chega à beleza de Decameron talvez porque não tenha a intenção. Ao contrário, o próprio cineasta parece mais solto, com a câmera “desgovernada”.

E essa noção de perda, de liberdade entre cenas absurdas e deliciosas, ganha ainda mais clareza na obra seguinte: As Mil e Uma Noites. Canterbury é uma bela crítica ao poder, com seu rei nojento e falador, com sua amante silenciosa e cheia de desejos, com seu jardim de anjos nus e a dança de belas moças – também nuas.

Ao fim, ainda inclui a descida de um frade ao inferno, no qual, sob o poder da terra escura e dos pequenos demônios nus, surgem as grandes nádegas de Satanás, a defecar mais frades, a mostrar a excrescência diabólica em contraponto à ordem dos homens.

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A terceira parte é a entrega total à aventura e ao erro. Às estranhas contradições, ao círculo de uma história que começa e termina em um mesmo ponto: com um rapaz e sua escrava. No entanto, ao fim é ele que se torna escravo, enquanto ela – confundida com um homem, revestida por peças metálicas – é transformada em rei.

A trilogia encaixa-se com estranheza. Enquanto todas as partes e suas pequenas histórias parecem tão próximas, nada faz sentido quando aproximado. Todas incluem personagens sem compromissos com os anseios do espectador, com o drama ou a comédia esperada e típica às narrativas convencionais.

Ao longo de sua carreira, o poeta-cineasta Pasolini voltou-se à marginalidade em Desajuste Social, ao confronto com a grande cidade em Mamma Roma, a Cristo em O Evangelho Segundo São Mateus, à mãe e ao pai em Édipo Rei.

O diretor brasileiro Glauber Rocha argumenta que Pasolini já tratava de Édipo, antes, em seu Cristo. Perto do fim de O Evangelho, diz Glauber, Cristo questiona o próprio pai, como se este o tivesse traído: “Pai, por que me abandonaste?”.

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Como os outros filmes de Pasolini, a Trilogia da Vida é sobre odisseias, aventuras cujo sentido não foge às mesmas aventuras, com suas doses de primitivismo.

O filme de seguinte do diretor italiano, sua última obra, é Saló ou 120 Dias de Sodoma, a partir de Sade. É a antítese da Trilogia da Vida, ponto no qual o desejo é aprisionado. A obra dialoga com a realidade da época, pois, para Pasolini, talvez o fascismo ainda estivesse vivo na sociedade consumista e industrializada.

O desejo, no grande castelo, não é uma escolha. A ordem leva os jovens a praticar diferentes atos, a apenas obedecer a seus senhores. São, em ciclos, tratados como objetos, ou como animais, do suposto desejo à dor evidente, à morte.

Notas:
Decameron: ★★★★☆
Os Contos de Canterbury: ★★★★☆
As Mil e Uma Noites: ★★★☆☆

Fotos 1 e 2: Decameron
Fotos 3 e 4: Os Contos de Canterbury
Foto 5: As Mil e Uma Noites

Veja também:
Bastidores: O Evangelho Segundo São Mateus

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