Os espaços da ilha confundem o espectador. Não é possível entender as divisas, os caminhos, as distâncias. No interior dos prédios, corredores e estruturas metálicas cruzam-se por todos os lados. Por ali caminha o protagonista, o policial.
Depois não é mais assim: Ilha do Medo, de Martin Scorsese, muda o tempo todo. O policial, na companhia do parceiro, vai àquela instituição psiquiátrica, na ilha isolada, para encontrar uma mulher desaparecida, uma interna.
No meio desse jogo, eles trocam os ternos por roupas brancas. Tornam-se internos. A busca pela mulher deixa de ser o mais importante. Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio), o protagonista, passa a procurar por Andrew Laeddis, homem que teria colocado fogo em seu apartamento e matado sua mulher, vivida por Michelle Williams.
Aos poucos, e a cada nova camada, o espectador começa a perceber que se trata de um labirinto: talvez Daniels não seja quem acredite ser, talvez a ilha sequer exista.
As novas camadas colocam o espectador na posição do homem louco ou esclarecido – o que depende sempre do ponto de vista. Como lembra Scorsese, em entrevista, ou se embarca ou não. A trama policial é apenas o refúgio de Daniels.
Ele criou uma personagem para sobreviver, uma trama central. É alguém iluminado, justamente o louco. Pois encontrou a “saída”, o “refúgio”: contra a tragédia de sua vida pessoal, sua vida verdadeira, preferiu a própria ficção.
O que se tem é o ato maluco de percorrer corredores mentais, com fósforos à mão, com pouca luz, ou com a luz em excesso que parece cegar o investigador Daniels. É sobre loucura, sim, mas, sobretudo, como esta parece real, possível, como parece até mesmo necessária para se viver à sombra daquele estranho mundo de 1954.
A paranoia está por todos os cantos, da chegada à ilha entre a névoa à última tentativa de contato do médico com Daniels, ou Laeddis. Ao invés de se dirigir a ele pelo suposto nome verdadeiro, prefere o fictício. Talvez tenha embarcado na ficção.
O passado de Daniels emerge distorcido, em suas memórias: ele lembra a passagem pelos campos de concentração, rememora as pilhas de gente morta. Em uma sala com quadros de Hitler, assiste à morte de um oficial alemão, que agoniza.
O Holocausto é a tragédia de quem sobreviveu à guerra. Ilha do Medo, a partir da obra de Dennis Lehane, é sobre lidar com a morte. Daniels, ou Laeddis, transfere a dor da perda familiar à das mortes no campo de concentração – e, depois, transfere as torturas e experiências desses campos ao hospital onde está internado, na suposta ilha.
Durante sua procura, seu mergulho em si mesmo, encontra essa explicação: tudo à sua volta evoca a paranoia. Uma fábrica para produzir loucos, não para curá-los. As vítimas seriam os comunistas. Era o tempo do macarthismo, das perseguições.
Portanto, talvez a loucura de Daniels revele verdade: sua fuga, ao contrário do que se pensa, prende-o ainda mais. O mesmo farol que ilumina também mata. As tentativas de purificar uma raça – sob os ideais nazistas – levam a atitudes impensáveis, assistidas por Daniels quando era um soldado de olhar assustado.
Seu olhar segue como sempre. Ao longo filme, ele treme, tem dúvidas. Quando parece ter recuperado a “sanidade”, explica ao suposto parceiro que está pronto para tentar escapar de novo, ou apenas para ficar por ali, perambulando por sua ficção.
A tal ilha revela-se um hospital de bairro. O caminhar final, à morte, é tranquilo, pois o pior está na quietude, na aparência banal. Fora da ficção resta quase nada.
O espectador é refém do homem louco, que continua a fazer as mesmas perguntas. Não aceita outro caminho senão o já traçado, com médicos suspeitos, prisões, nazistas, tempestades, cemitérios, desfiladeiros e cavernas perdidas.
Nota: ★★★★☆
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