O jogo de espelhos é claro em boa parte de Ex-Machina: Instinto Artificial, escrito e dirigido por Alex Garland. Nas conversas do jovem programador Caleb (Domhnall Gleeson) com a androide Ava (Alicia Vikander), há sempre o vidro a separá-los.
Ora a câmera está com o jovem de carne e osso, ora do outro lado, com a suposta máquina dotada de sentimentos, a moça de jeito meigo. A impressão é que se refletem, em um jogo intenso de plano e contraplano, de curiosa dominação.
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Em vários momentos, Caleb percorrerá a casa isolada, sem janelas, futurista, como um jovem curioso, depois revoltado. Poucos dias ali são suficientes para transformá-lo: primeiro ele crê que nasceu para alguém como Ava; descobre, depois, que é Ava que nasceu para ele.
Não vale revelar muito, mas o fato de o criador dela ser o dono de um gigante site de busca dá a ideia geral desse jogo de espelhos proposto pelo filme: em um mundo em que esses sites vendem a ilusão de infinitas possibilidades, na verdade são seus usuários que terminam definidos por eles, reduzidos às suas buscas.
Com Caleb não será diferente: ele é tão moldado àquela experiência quanto Ava. A diferença é que foi maturado com o tempo, dono de uma história de vida nada artificial: a perda a família, a afinidade com as máquinas, a insegurança constante.
Não é típico rapaz correto que parece. Pode ser mal, ser imprevisível e descontrolado. Foi parar ali após vencer um concurso interno de programadores da empresa em que trabalha. O prêmio é passar alguns dias com o dono da companhia.
O outro homem é seu oposto: tem barba, é atlético, gosta de falar em linguagem direta e, em certa medida, recusa frases filosóficas sobre a existência. Cobra do jovem, tão cedo, a confidencialidade que o ambiente exige, para que o convidado possa interagir com Ava, para que seja possível fazer História.
Ironicamente, essa é uma história de confinamento. Além de remeter ao jogo de espelhos, a casa do patrão, Nathan (Oscar Isaac), remete ao aquário no qual todos estão presos: acreditam saber tudo sobre o outro e nada sabem.
Por isso, o espelho reflete e refrata. O filme foge dos típicos estereótipos, já que a máquina não é quem parece, nem o homem. A máquina de traços humanos usará a seu favor o que o homem tem de mais sagrado: o poder de se adaptar.
Sobreviver ao aquário faz com que Ava interprete. Não por acaso, o título do filme, a partir do termo “Deus ex machina”, também tem relação com o teatro, quando um deus desce ao palco para unir as pontas soltas e conferir desfecho à história.
Cabe a Ava essa condensação, consciência de que algumas pessoas devem ser sacrificadas para que sua existência não se limite apenas àquela caixa metálica à qual foi lançada, a necessidade de passar ao outro lado e escapar desse palco.
Mais: a ideia de que ser humano é entender o jogo das relações, é seduzir, é parecer desejável, é trocar de pele, ou de máscara, com a intenção de sobreviver ao estranho mundo selvagem do lado de fora, que não pede outra coisa senão a adaptação.
O espelho volta ao fim, quando a multidão distante e sem rosto aparece refletida no vidro, enquanto Ava observa o novo espaço. A essa altura, a ficção científica toca a realidade, toca o tempo próximo, quando é possível especular: mais do que monstros para destruir, as criações querem ser parte do meio, viver como qualquer um.
(Ex Machina, Alex Garland, 2014)
Nota: ★★★☆☆
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