O incômodo gerado por alguns filmes de Jean-Luc Godard tem explicação: eles recusam os caminhos que o espectador aprendeu a chamar de “história”.
A revelação vem com o título: Adeus à Linguagem. Muito do que se pode esperar começa com esse título perfeito, que não deixa “esperanças” ao seu espectador. Aqui, os truques do cinema – suas mentiras – são evidenciados ao espectador: os cortes abruptos, as imagens tortas, as misturas, a aparência de delírio.
O filme está ali e não está. Godard afirma sua negação, faz o caminho oposto ao esperado sempre – ainda que seu título não adule ou engane ninguém.
Mas há, também, um duplo sentido nesse título perfeito. O próprio Godard explicou, em entrevista, que “adeus”, em sua terra, a Suíça francesa, também pode significar “olá”. Assim, a obra celebra o fim e o início – o zero e o infinito, o nascimento e a morte.
Se a ideia é confrontar o espectador, talvez não faça diferença ser início ou fim. O que se vê, talvez, seja não mais que um novo começo ou a chegada ao estágio final, quando se deve pensar o pós-cinema, o novo, quando a linguagem esfarela ou brota.
Àqueles presos à linguagem comum, à linha da estrutura narrativa formal, Adeus à Linguagem certamente será o encerramento: a perda das esperanças para se encontrar a história, suas personagens, o começo, o meio e o fim.
O “adeus” de Godard brinca com as palavras: pode ser, também, “ah, Deus” – como ele próprio deixa claro em um letreiro. Por sinal, a palavra tem grande importância ao diretor. Ele faz questionamentos com os letreiros, lança frases filosóficas para fazer pensar, e as recobre com imagens díspares do mundo real.
Nesse início ou fim da linguagem, ou apenas nesse paradoxo, o cão assume o papel principal da obra. O animal é aquele que não produz linguagem, cultura, mas que pode receber a carga da linguagem humana – e ser personagem de uma história.
Mas Godard não deixa espaço para tanto: não há história a contar. Não pelos meios típicos. O espectador busca e não encontra. Uma das personagens reclama da existência das personagens, da insistência em formá-la a partir do outro. E talvez Godard esteja desafiando o espectador a fazer isso – até mesmo por meio de seu cão, Roxy.
Em seu primeiro filme e em outros, Godard colocou casais ao centro. Evocou o cinema clássico, o dos bandidos fujões, em Acossado e O Demônio das Onze Horas, o barulho do mundo e a dificuldade de estar alheio aos seus problemas em Week-End à Francesa e Tudo Vai Bem.
Cada vez mais politizado, ou cada vez mais disposto a abordar o assunto, a impressão é que Godard foi ficando mais rígido à medida que radicalizava a linguagem: a aparentemente liberdade de Acossado deu vez aos jovens maoístas de A Chinesa.
Sempre buscou assimilar as novidades sem perder de vista o passado – um livro de Dostoievski divide espaço com o Google em Adeus à Linguagem. Ainda no início, uma cena de O Paraíso Infernal, de Hawks, também surge nessa experiência 3D.
Provocador, ele fala do fracasso de sua Europa – ou da civilização. No anterior Film Socialisme (foto abaixo), o navio simboliza todas as partes do mundo em movimento, mas com a impressão de imobilismo. Falta-lhe vida, sobra frieza.
Sobre a água, há filósofos e artistas, há dança e uma sala para a exposição de quadros, há dinheiro preso às máquinas e pessoas dispostas a apostar alto para tentar resgatá-lo, há a música estridente que, no fundo, não cabe no filme de Godard – de tão estranha.
De outro lado, em Film Socialisme, há duas repórteres tentando invadir o espaço de uma família que vive entre uma oficina mecânica e um posto de gasolina. Tem-se o efeito contrário ao do grande navio: são pessoas que questionam sem sair do lugar.
Buscar paralelos entre todas essas situações é buscar uma história possível, tentar encontrar a linguagem à qual o espectador aprendeu a se acostumar. Um vício, espécie de reflexo do mundo-história que se coloca estranhamente à frente dos olhos, da mania de transferir aos outros o sentimento, o drama, a reviravolta, o triunfo ou o fracasso.
Outro navio cruza a imagem de Adeus à Linguagem. Navio com todas as partes do mundo, feito de prazeres e tecnologia, de rumo incerto. Entre a natureza e a metáfora, o homem sempre prefere a segunda. Esse vício insiste em não se despregar.
Nota: ★★★★☆