Mais que Cidadão Kane, a própria filmografia de Orson Welles deve ser decifrada. São filmes diferentes, baseados em autores diferentes e, como Kane, sobre trajetórias que não podem ser resumidas em um filme (ou obra) – o que Welles tinha consciência.
Ao fim de sua obra-prima de 1941, vê-se fumaça. De repente, Rosebud torna-se cinzas. E a história do cinema não seria mais a mesma. Tampouco a de seu diretor: Welles sofreria problemas ao conceber o maior filme do cinema logo no início e, de quebra, desafiar o sistema. Contra Hearst e, à sua maneira, contra a indústria do espetáculo.
Abaixo, o jornalista e crítico de cinema Paulo Santos Lima responde três perguntas sobre o diretor Orson Welles e seus filmes.
Ao passar pela filmografia de Orson Welles, parece haver certa obsessão de levar a literatura e mesmo o teatro à tela grande – como Shakespeare, Kafka, Conrad etc. Acredita que Welles levava essas outras artes mais a sério que o cinema?
A formação do Welles, desde a infância, foi artística, entre música, mágica, teatro, tudo trazido pelo círculo social dos pais. Estes incentivaram o “lado artístico” do pequeno Welles. Acho que o Welles colocava todas as artes em mesmo grau, inclusive partindo da pintura e da literatura (em F for Fake) pra falar sobre questões que perpassavam sua condição de artista (de cineasta, também, mas, antes, de artista). Truffaut ou o Bazin fala sobre a montagem do cinema do Welles ter a ver com a música. No final da vida, ele disse que gastou energia demais com o cinema, que demandava muito empenho para se viabilizar, e que podia ter feito outras coisas. Fica clara a sua relação e predileção com o cinema, mas, como disse, o Orson Welles é um artista, um artista moderno, no sentido mais universal do termo, pois dialogou com todos os tipos e níveis de arte.
Sobre sua obra mais famosa, Cidadão Kane, há o enigma de Rosebud. Para você, o que é Rosebud?
Rosebud, pra mim, é o trenó, no sentido de algo realmente “banal”, mas perdido no tempo e extremamente íntimo para Kane. Algo inacessível e enigmático, pois o sentido real e profundo do trenó ficou guardado com Kane, inclusive porque para nós espectadores (e seria o mesmo para os personagens do filme), Rosebud seria um trenó, talvez uma marca de uma infância perdida, uma melancolia. Mas Rosebud também é o dispositivo para que a trama tenha um mínimo de norte e condução, quase uma força motora que alimenta o sentido da trama do filme, que seria a revelação do enigma Rosebud, ainda que o filme trate, sobretudo, da vida de um homem (e Cidadão Kane deixa claro que a vida de um homem não é totalmente abarcada por um filme).
Você considera a adaptação de Welles para Othello uma obra-prima. O que há de tão poderoso no filme?
Othello é o grande exemplo da situação de Orson Welles, um cineasta querendo fazer sua arte junto a um meio que depende de forças materiais. O drama do cineasta, que levou três anos pra realizar o filme, rodando e vários lugares, está impresso no filme, que é extremamente bem realizado, mas tem uma natureza quase “artesanal”, como sequências que magicamente acontecem na tela à perfeição, com muita força, e cujas algumas tomadas foram rodadas com intervalo de meses e em lugares distintos. O início do filme é quase Eisenstein, iconográfico e mostrando o cortejo fúnebre de Otelo, até vermos o “vilão” Iago olhando, do alto, encantado e aterrorizado, o mal que fez. Welles sempre aposta nessas figuras que, mesmo malévolas, são a força cinematográfica dos filmes. Iago poderia ser Hank Quinlan, o policial truculento de A Marca da Maldade, que é a figura mais crível ali.
Paulo Santos Lima é jornalista e crítico de cinema. Escreve para a Revista Cinética e é colaborador da Revista Monet e do jornal Valor Econômico. Já escreveu para a Revista Bravo e o jornal Folha de S. Paulo e faz curadoria de mostras e dá cursos livres de cinema.