A neve da avalanche deixa a tela completamente branca. O “não ver”, em Força Maior, dá-se pelo branco absoluto, não pela escuridão. E esse branco, aos poucos, dá vez às pessoas, em um universo verdadeiro de instinto e revelação.
Pois, com a avalanche, o marido não pensa em outra coisa senão salvar a própria pele: a mulher e os dois filhos pequenos são deixados para trás, à neve, e ele corre para viver.
Em Força Maior, sua atitude é, ao mesmo tempo, a abertura ao drama e à comédia: drama a partir da desconstrução da família perfeita; comédia a partir das situações que fazem retornar ao lamentável episódio da fuga do pai, também aos momentos em que ele busca se justificar.
Nessa indefinição de gênero, o filme joga à perfeição com o humano por trás de sua suposta felicidade, bravura, de seu sentimento de coletividade.
O humano em questão é impregnado por essa “força maior”: entre o drama e a comédia, resta a natureza humana, talhada à base desses opostos que mais definem as personagens do que as fazem parecer confusas.
Para o diretor Ruben Östlund, mais do que a supremacia de um gênero, a presença de um caminho ou uma marca, sobressai-se a busca pela “força maior”, ao mesmo tempo pela inversão da ideia de paz gerada pelo branco constante.
No fundo, é um filme de guerra, mas a guerra silenciosa que dilacerada tudo e a todos, o mal-estar presente nos silêncios, ou mesmo no barulho das bombas, nas montanhas, como o anuncio de uma nova avalanche.
Ao centro, a família, as fotos em família, as tão esperadas viagens, os amigos, os jantares agradáveis. Não bem assim. Ao deixar os filhos e a mulher para trás, o homem revela seu lado estranho, não menos verdadeiro. E ao ficar com seus filhos, a mulher não deixa, também, de revelar outro lado: a mãe protetora.
A dificuldade parte dessas diferenças: como ela poderia ignorar essa situação e simplesmente continuar a viver com tal revelação? É em meio à avalanche – com o medo da morte – que brotam atitudes impensáveis.
O pai passa longe do vilão. A mãe, por sua vez, revela-se um pouco estranha quando, após o acidente, deseja esquiar sozinha, sem a família, talvez para se sentir um pouco mais livre de seu papel anterior, o da mãe protetora.
O pai fujão (mas nem tanto) é interpretado por Johannes Kuhnke, próximo à imagem do solteiro em busca de aventura. Em uma sequência engraçada, ele solta o sorriso – que rapidamente dá vez ao amargor – quando uma mulher aponta-o como bonito.
No papel da mãe está Lisa Loven Kongsli, no caminho contrário: está mais próxima à imagem da mãe formada, estável, que não entende, por exemplo, as relações extraconjugais – tratadas com normalidade – por uma amiga viajante.
A cada nova situação, o casal parece mais distante, mais separado: dos enquadramentos em que aparecem juntos, o espectador é levado àqueles em que se celebra a desunião, a começar pelo tão sagrado momento do escovar dos dentes.
Nos poucos dias ao lado da montanha, ao som das bombas, à brancura que nada deixa ver, essa família sofre e se descobre: tenta se reconstruir em pouco tempo a partir do que pode ser tão dramático quanto cômico, enquanto reina o indefinido.
Nota: ★★★★☆
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