À medida que caminha por estradas e trilhas, Cheryl é condenada a voltar ao passado. A viagem alivia, o passado pesa. Ela descobre, em Livre, que não pode se despregar do que a fez fugir: ao contrário do que sugere o título brasileiro, ela não pode ser livre.
Há certa semelhança com a trajetória da protagonista de A Liberdade é Azul, de Kieslowski, que, para se livrar da lembrança do marido e da filha pequena, muda sua rotina e se envolve em aventuras, inclusive amorosas.
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Cheryl escala uma montanha e tem de retirar a própria unha do pé, com sangue, logo nos primeiros instantes de Livre. É o preço a pagar nessa jornada para provar algo a si mesma, ou para se purificar em meio à natureza, ao nada.
Ao perder uma de suas botas e depois jogar a outra fora, ela grita. É um misto de raiva e desespero: momento em que o grito, com eco, leva ao passado, às pequenas partes do velho cotidiano. A montagem rápida dá a impressão de uma lembrança indesejada, ao mesmo tempo inerente e forte, intrusa.
O diretor Jean-Marc Vallée apoia-se mais no passado que no presente. Carrega o filme de drama. É nesse ponto que Livre perde a força: o que poderia ser uma viagem de transformação se converte em um olhar incessante ao passado de dor.
Para tentar fugir, essa moça percorre mais de mil milhas pelos Estados Unidos, passando por diferentes estados, climas, esbarrando em tipos variados. É o típico roteiro para um filme do tipo: as estranhezas parecem mais comuns do que se supunha.
A força da protagonista pode ser vista em diferentes momentos. Ela parece não ser capaz de levar tanto peso. Sua mala funciona como representação da própria vida, do passado que não se desprega. Por isso, ela leva mais peso do que precisa.
Quando outros viajantes encontram a personagem, logo tomam um susto: trata-se de uma mulher pequena e sozinha nessa trilha difícil – em mais de 90 dias de caminhada, entre Estados e paradas, com homens estranhos e riscos a cada movimento.
Cheryl decidiu viajar após perder a mãe, vivida por Laura Dern. Mais tarde, separa-se do marido, cai no mundo, droga-se, faz sexo com quase todos os homens que encontra pela frente. Como se vê, sua fuga começou antes, e por outro caminho.
Com a morte da mãe, seu mundo perde o sentido, e ela questiona até mesmo a existência de Deus. Para se livrar de peso maior, encontra outro peso, e outro caminho: fica isolada, certa noite, no meio do deserto. É a luz em meio ao nada, como se tal travessia fosse vital para reconhecer seu lugar nesse lugar nenhum.
Como Cheryl, Reese Witherspoon entrega uma interpretação convincente. Vai da menina inocente à jovem perdida. Em sua caminhada, torna-se outra, talvez não tão interessante ao drama que Vallée deseja explorar: não é mais a menina inocente, tampouco a jovem descontrolada. É natural, em busca de outro caminho – mesmo quando todos levam ao mesmo ponto: seu próprio interior.
Nota: ★★☆☆☆