A Trapaça, de Federico Fellini

Tanto em A Estrada da Vida quanto em A Trapaça, ou mesmo em Noites de Cabíria, as personagens terminam sozinhas. Dos três, em A Trapaça vê-se o pior cenário: um homem machucado, largado pelos comparsas à beira da estrada, lutando para pedir ajuda.

Ao falar sobre esse filme, Federico Fellini disse que é imoral contar uma história conclusiva. Como se sabe, o neorrealismo italiano rompeu com a lógica típica do conhecido “realismo romântico fechado” hollywoodiano. Os filmes não precisavam mais “se fechar”.

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E, dos filmes fellinianos, A Trapaça está entre os mais cruéis, sem ser necessariamente o típico exemplar neorrealista. Ao fundo, ecos da religião, como se viu em A Estrada Vida, com o homem arrependido, em desgraça, em busca do perdão.

Ou o jeito quase santo, feliz, não necessariamente ligado à imagem imaginada para uma prostituta, em Noites de Cabíria. Fellini suaviza, faz o feio belo, traz partes de uma vida miserável para depois entregar certa redenção: suas personagens – antes do maravilhoso A Doce Vida – não são corrompidas por inteiro.

Por isso, resiste a esperança nas expressões de Augusto, o bandido bonachão, que resiste tanto à bondade quanto à maldade. Ele é um homem dividido: consegue aplicar golpes em pessoas miseráveis, em A Trapaça, e ainda assim parecer um bom pai.

Essa dualidade marca a fita de Fellini, com Broderick Crawford, famoso ator de filmes americanos. Era necessário um ator mais velho para o papel e, não por acaso, mais de uma vez sua personagem fala de idade ao longo da história.

Ele e outros tentam ser livres. “Quando se é jovem, a coisa mais importante é ser livre, é mais importante do que o ar que se respira”, Augusto explica para outra personagem, Picasso (Richard Basehart).

Importante, também, mostrar a vida comum por trás do grupo de trapaceiros, para assim chegar ao lado humano da história: a filha inocente de Augusto e a mulher desconfiada de Picasso, Iris, vivida pela musa de Fellini, Giulietta Masina.

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E, assim, à impossibilidade de ser livre, ou à ironia da total liberdade que o encerramento parece anunciar: a imobilidade do homem quase morto, cujo desfecho Fellini não deixará o público saber. Ou o desfecho que resta, pois não há filme inconclusivo, mas sim uma história sem conclusão.

O problema de Picasso é estar dividido como os outros. Sua mulher apenas desconfia que ele seja um trapaceiro. Quando aparece com o bolo de dinheiro fruto de um crime, ela solta um olhar de dúvida. Com pouco, Masina extrai muito.

Começa com o crime contra duas senhoras em uma região afastada, local em que persistem a religiosidade, a inocência e o desejo de enriquecer. Fellini explora a ideia de que nem todos são santos: a cobiça sobrevive por todos os lados, o que talvez alivie o pecado dos trapaceiros. Todos partilham os mesmos desejos.

Ao oferecer aos camponeses um tesouro, os bandidos também anunciam a necessidade de pagar por algumas orações a um morto enterrado no local, cuja ossada faz companhia ao ouro e às joias do velho caixote. O golpe está pronto.

A certa altura, na última ação de grupo, Augusto sente-se tocado pela presença de uma menina com paralisia, de muletas. Não diz muito, ou nada, mas o público entende o que quer dizer. Talvez não deseje ir em frente, aplicar o golpe, faturar com crentes e miseráveis. Sua natureza, como a da personagem de Humphrey Bogart em O Tesouro de Sierra Madre, é mais forte. Ele termina na miséria, rumo ao ouro e à morte. Sozinho, à espera da salvação.

(Il bidone, Federico Fellini, 1955)

Nota: ★★★★☆

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