Um conhecido ditado no meio cinematográfico diz que “morrer é fácil, difícil é fazer comédia”. Ainda mais difícil, ao que parece, é fazer chorar sem cair na gratuidade do dramalhão e, ao fim, entregar uma verdadeira obra de arte. Douglas Sirk, famoso por uma série de melodramas americanos, sobretudo aqueles realizados nos anos 1950, chegou a esse difícil ponto em que o gênero é reconhecido como grande arte, não meramente como ponte à lágrima fácil.
Seus filmes espelham o que o cinema desse país – tão marcado pelo modelo industrializado, a serviço do produtor – tem de melhor. Inscreve-se, o cineasta, entre os grandes de seu tempo, como Hitchcock, Fritz Lang e John Ford, apenas para ficar em três deles. Homens que trafegaram em gêneros sem perder uma marca comum – aquela que os leva, seguramente, à categoria do autor.
Boa oportunidade àqueles que desejam conhecer a obra do diretor de Imitação da Vida é a Mostra Douglas Sirk, o Príncipe do Melodrama, que começa nesta quarta-feira e segue até 10 de junho no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), em São Paulo. A curadoria coube a dois especialistas: Cássio Starling Carlos e Pedro Maciel Guimarães, que pinçaram 29 filmes do mestre, além de obras de diretores diversos – de países diversos – que fizeram homenagens e beberam na fonte de Sirk.
Em entrevista ao Cinema Velho, Pedro Maciel fala da importância da obra do cineasta, como o descobriu e as extensões do melodrama. O curador é mestre e doutor em cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris 3). Trabalhou como crítico de cinema e cobriu diversos festivais internacionais. Além do Brasil, tem textos publicados na França e em Portugal sobre estética e história do cinema português. Defendeu tese de doutorado sobre o poética do processo colaborativo no cinema de Manoel de Oliveira e, atualmente, é pós-doutorando da ECA-USP com trabalho sobre atores de cinema. Pedro foi também responsável por perfis biográficos da coleção Folha Cine Europeu.
Como surgiu a ideia de uma Mostra sobre Douglas Sirk?
Eu conheci a obra de Douglas Sirk na França, na Cinemateca de lá, em 2006. Havia uma retrospectiva lá sobre o cineasta. Até então, nunca tinha ouvido falar dele e não conhecia profundamente o cinema americano. Mas reparei que as pessoas que frequentavam a mostra eram completamente apaixonadas por ele. No meu caso, havia até um certo preconceito em relação ao melodrama, ao gênero lacrimoso. Mas foi uma oportunidade de conhecer alguns de seus filmes. A ideia de trazer a obra dele para cá é justamente para valorizá-la, como também o melodrama, e, assim, recuperar o que o gênero tem de nobre. Os filmes de Sirk têm uma forte crítica social. Você pode se emocionar, se envolver, enquanto ele faz uma crítica à sociedade americana dos anos 1950.
Qual foi o primeiro filme que viu dele na Cinemateca francesa e que lhe fez despertar para o seu cinema?
Imitação da Vida, o que fez com que buscasse uma bibliografia sobre ele. E, por isso, acabei descobrindo as referências que outros cineastas fizeram à sua obra, como o Fassbinder. Eles, por sinal, são do mesmo país (Alemanha), mas acho que isso não foi algo preponderante para a referência.
O Fassbinder, por sinal, refez Tudo o que o Céu Permite como O Medo Devora a Alma. Mas a impressão é que ele toma o tema de Sirk, não sua estética.
Exatamente. O tema está presente nos dois, mas, no caso do Fassbinder, a obra é mais “seca”. E, a partir desse tema, cada um deles traz suas consequências. Nos dois filmes, a mulher mais velha encontra impedimentos para se relacionar com um homem mais novo.
O estilo do melodrama de Sirk serviu de inspiração aos roteiros de televisão, como no caso das telenovelas?
Tematicamente, o que as novelas fazem é um decalque constante do que Sirk tratava em seus filmes. No catálogo da Mostra, inclusive, há um texto em que analisamos essa passagem do cinematográfico para o televiso. Várias incursões temáticas do cineasta são recuperadas até hoje pela televisão.
Um filme como Sublime Obsessão, por exemplo, às vezes parece até ingênuo demais. Na história, a mulher fica cega e surgem alguns esquematismos que farão ela e seu grande amor se encontrarem no final. Esse tipo de cinema, com uma característica mais clássica, ainda tem espaço hoje, com um público adulto sedento por histórias mais cínicas, como nos filmes dos irmãos Coen?
O sentimentalismo tem espaço como tinha antigamente. As pessoas ainda se emocionam muito. Vi pessoas aos prantos na Cinemateca francesa. Como disse, seus filmes são marcados por críticas sociais ainda em alta e há ironia do primeiro ao último plano. Há sempre uma característica comum em sua obra, o que é algo comum aos grandes autores. Mesmo tratando de diferentes histórias, ele passa por todas com uma ideologia comum. E a ironia está do início ao fim. Ainda que esteja em um país com tamanha influência do produtor, de um cinema mais industrial, como os Estados Unidos, ele trouxe sua característica e deixou uma marca. Mesmo quando há um final feliz, algo travará. E ele mostrará uma sociedade pobre, corrompida.
O Sirk pode ser considerado um autor de cinema, trabalhando em um sistema de estúdios? Qual é o traço mais comum no cinema dele?
Ele é um autor nato, genuíno. Um autor pode ser identificado mesmo quando passa de um gênero para outro, de um melodrama a um faroeste, por exemplo. Em qualquer um, sempre deixará seu traço. E o traço comum de Sirk, como já disse, é a ironia.
Qual a cena que mais lhe marcou em seus filmes e que resume, para você, o cinema de Sirk?
Na verdade, são duas. A primeira é a cena final de Imitação da Vida, aquela do enterro. Nesse momento, o diretor não está enterrando apenas uma personagem, mas todo o tipo de cinema que exercia. Vale lembrar que aquele era um momento-chave, quando começavam a surgir os “cinemas novos” em todo o mundo. Sirk enterra, ali, um gênero. A outra cena que me marcou muito é o momento em que os filhos, em Tudo o que o Céu Permite, presenteiam a mãe com uma televisão. É como se eles enjaulassem a mulher, como se dissessem que, devido à sua idade, ela não pode mais se relacionar com ninguém. Isso foi retomado por Fassbinder. E há, claro, o reflexo dela na própria televisão. Ela, felizmente, chega à conclusão que deve seguir seu próprio caminho.
Veja a programação completa da Mostra Douglas Sirk, o Príncipe do Melodrama
Rafael Amaral (16/05/2012)