Ao escrever sobre A Árvore da Vida, Fábio Andrade vai além dos limites da badalada obra de Terrence Malick: passa por A Origem da Obra de Arte, de Heidegger, e chega a Um Par de Sapatos, de Van Gogh. Pelo que se vê, o crítico e editor da revista eletrônica Cinética está disposto a ampliar o olhar de quem lê o que ali se escreve. E quem, sobretudo, arrisca-se em textos mais longos, que estimulam o pensamento crítico e a reflexão – como é a proposta do site que ele está à frente, um dos assuntos abordados pelo profissional em entrevista exclusiva.
Essa expansão do olhar tem a ver com a paixão pelo cinema e também pelo “descobrimento”, como ele mesmo argumenta ao falar da prática do cineclubismo. E não é só: carioca, com 29 anos, Fábio também é músico, roteirista e fundador do CinePUC. Abaixo, um apanhado sobre a difusão da produção nacional nos cinemas, as escolas, o cinema político e panfletário e quais cineastas resumem melhor o significado da sétima arte.
Há uma impressão, em relação ao cinema atual, de que a arte passa por uma crise criativa. Sobretudo quando se trata do cinema americano. Isso se deve a pressões da indústria, em busca de cifras, ou à falta de talento e olhar dos novos profissionais?
Não sei se tenho resposta para a sua pergunta, porque também não sei se concordo com a premissa de que a arte atual passa por uma crise criativa, mesmo no recorte específico do cinema americano. Há muitos outros dados de mudança no mundo além do cinema, vários deles de influência decisiva sobre o cinema e a arte, o que dificulta, ao meu ver, comparar 2011 com 1931, por exemplo. O cinema não tem mais o mesmo papel no mundo, a estrutura de produção mudou em grande parte, a televisão norte-americana hoje tem uma produção de dramaturgia talvez sem paralelos em outras épocas. Enfim, são vários estudos a serem desenvolvidos e talvez mesmo esses estudos não fossem capaz de apontar respostas satisfatórias. Os filmes continuam por aí, independente disso tudo, e isso me parece um dado mais importante.
Números da Ancine apontam um aumento na venda de ingressos no país, quando se trata do cinema nacional. No entanto, os campeões de venda são, em geral, comédias apelativas, filmes meramente comerciais. Qual a dificuldade para o público quando se trata de descobrir obras com maior expressão?
Há uma dificuldade histórica que não vai ser resolvida apenas com filmes, mas que demandaria um investimento político pesado do governo. Os Estados Unidos precisaram fazer isso lá no começo do cinema para que as pessoas passassem a ver os filmes americanos no próprio país, em época em que o mercado era dominado pelo filme europeu. E é um jogo pesado, nem sempre limpo, que o Estado nunca me pareceu muito disposto a jogar aqui no Brasil. Mas acho importante nos perguntar quais filmes seriam esses de maior expressão, que expressão é essa, e se ela é também uma expressão que pode vislumbrar um grande público. Eu não tenho dúvida que grande parte do cinema brasileiro teria resultados melhores se as pessoas tivessem o hábito de ir ao cinema ver filmes brasileiros, indiscriminadamente. Mas ainda assim, dentro desse espectro há distinções necessárias. Eu consigo imaginar que um filme como Riscado, do Gustavo Pizzi, poderia ter um apelo popular muito maior do que teve; já filmes como O Céu sobre os Ombros, do Sérgio Borges, ou Estrada para Ythaca, dos irmãos Pretti e dos primos Parente, não são filmes de perfil de grande público, não tanto quanto o Riscado, ao menos. Não dá para esperar que um cinema que quer dialogar com Pedro Costa possa despertar um interesse muito maior do que os filmes do próprio Pedro Costa. Os filmes têm tamanhos diferentes e é importante não ter ilusão quanto a isso.
Nas escolas de cinema, muito se fala da importância em entender teorias passadas, como o construtivismo soviético. Qual a importância destas teorias à nova geração? É importante se prender a uma em detrimento de outra, ou o melhor é navegar por todas?
Eu acredito que as teorias são ferramentas. Elas ajudam a lidar com os filmes, porque elas não foram escritas visando um ou outro filme, mas todo o cinema. Acho a teoria de cinema um bom ponto de partida para quem deseja estudar filmes, pelo simples fato de que muito do que nós começamos a pensar agora já foi pensado com maior profundidade e propriedade por outras pessoas no passado. Mas nesse contato é sempre importante se lembrar que as teorias foram escritas porque os filmes existiam, não o contrário. Os filmes são o começo e o fim, a teoria é muitas vezes um bom mediador. Mas nem sempre.
Na França dos anos 1940 e 1950, por exemplo, existia uma espécie de guerra ideológica entre marxistas alinhados à estética soviética e outros, ligados às ideias de Bazin. Esses embates ainda perduram? A falta deles aponta a certo afrouxamento do debate sobre cinema?
Os embates sempre existiram, embora eles tomem outras formas. Pode ser uma batalha entre a crítica cinefília e a academia, e mesmo dentro dessas duas esferas, para ficar em uma dicotomia antiga e ainda viva, há diversas outras divisões possíveis. Eu particularmente nunca me interessei muito por isso, embora tenha aqui minhas afinidades de pensamento. Mas o pensamento pra mim é algo que demanda um desprendimento e uma liberdade que essas escolas muitas vezes cerceiam, transformando a prática do pensamento em religião. Esse é um caminho que acho perigoso, por diversos motivos.
O cinema pode ser político sem ser datado? O discurso panfletário não termina por agir contra uma determinada obra?
Mas panfleto não é sinônimo de política. Há cinemas que se tornam panfletos de políticas que são externas à arte. O cinema soviético é um bom exemplo. E esse cinema está necessariamente perto do kitsch, o que me parece um caminho complicado e um tanto indigno pra arte. O que sobrou de realmente interessante do cinema soviético é graças ao talento individual de alguns artistas que conseguiam se impor à obrigação panfletária. Mas existe a arte que não precisa, eu diria que nem deve, ser panfletária para ser política. Ou melhor, não é por ser panfletária que ela será política. A política da arte é uma política à parte, que diz respeito às organizações internas das próprias obras e que têm uma influência política no mundo. Mas para criar uma obra verdadeiramente política, o artista precisa entender essa distinção entre a arte política e a política da arte.
Você é um dos fundadores do CinePUC, que leva cinema para dentro de uma universidade. Qual o peso do papel do cinema na formação de futuros profissionais, saídos das instituições de ensino?
É difícil saber o peso profissional que ele tem nos outros, mas eu posso dizer com tranquilidade que, não fosse o CinePUC naquela época, eu hoje dificilmente estaria editando a Cinética e trabalhando diariamente com cinema. Eu sempre acreditei que ver filmes era parte essencial do meu aprendizado, além de os filmes terem sido o motivo principal para eu ir ao cinema. Mas o engraçado é que, embora a gente tenha criado o CinePUC para os alunos de cinema, muito poucos realmente o frequentavam – e imagino que vários deles tenham seguido carreira em cinema e se sintam razoavelmente preparados ou realizados sem essa dedicação à cinefilia. Eu não conseguiria. Mas o lado bom é que o cineclube acabou atraindo gente de outros cursos, que frequentava as sessões porque era apaixonada por cinema, e ao mesmo tempo lidavam com os filmes a partir de outros pressupostos, de outros olhares, de uma outra formação. E isso era muito enriquecedor às conversas, e é algo que eu acredito que tenha marcado profundamente minha visão de cinema.
Com a presença cada vez maior do cinema como mero comércio e com filmes de baixa qualidade em salas, qual o papel que os cineclubes devem desempenhar?
Não tenho certeza se os cineclubes devem responder a isso. Talvez a pergunta seja: por que fazer um cineclube quando qualquer pessoa com um computador e uma conexão de internet pode baixar os filmes em casa e criar sua própria coleção, fazendo sua própria seleção? O cineclubismo pra mim sempre teve um caráter forte de descobrimento, mas que só realmente se completava nas conversas após a sessão. É isso que ainda levamos pra Sessão Cinética, inclusive. Os cineclubes partem dessa filosofia de que o pensamento, mesmo sendo individual, pode ser desenvolvido em conjunto, e esse era um dos aspectos que me interessava. E outra coisa que me ajudou muito é que, como eu sabia que ia ter que falar após o filme, o cineclube me obrigava a redobrar a disposição em encontrar algo para dizer nos filmes que decidíamos exibir. Nós escolhíamos os filmes que gostávamos, mas a exibição seguida de debate me obrigava a pensá-los com uma dedicação que eu dificilmente teria se estivesse só assistindo a um filme. A crítica ainda movimenta sentimento parecido em mim.
Sobre o modelo de revista digital, como a Cinética, vemos cada vez mais surgirem sites voltados a analises de filmes, com textos mais profundos e extensos. É possível atingir o grande público com tal proposta?
Acho que essa pergunta se fecha com aquele meu comentário sobre os filmes terem tamanhos diferentes. A proposta da Cinética visa a reflexão e não impomos limites aos caminhos que cada redator acha ser importante para a sua reflexão. Nós editamos os textos, discutimos as escolhas e os formatos de cada um, mas não há um limite ou perfil que anteceda aos textos, a não ser o que já foi construído pela história da própria revista. Aos poucos, encontramos um público que se interessa por isso. Não é um público pequeno, mas também não é comparável ao do UOL Cinema, por exemplo. Mas nós não queremos ser o UOL Cinema, então isso não é uma preocupação. Acho que a revista ainda tem espaço para crescer, mas assim como a produção crítica que mais nos interessa não é considerada pelo grande público, não temos motivo para esperar um destino diferente pra Cinética. O que não significa que não pensemos no leitor, e que não existam espaços importantes que independam do número bruto de leitores.
A Cinética sobrevive de colaborações ou existe remuneração? É bem acessada?
A Cinética é um trabalho de amor. Todas as contribuições são absolutamente voluntárias e a revista é mantida no ar com dinheiro do meu bolso, da mesma maneira que foi mantida pelos outros editores no passado. Mas mesmo funcionando com colaborações voluntárias, ela não é uma revista colaborativa. Ao longo dos anos, fomos reunindo pessoas que têm algum ponto comum na relação com o cinema, que gostam e sabem escrever, e que acham importante publicar na revista. E quanto a isso, somos, sim, muito rigorosos na escolha de quem vai colaborar com a revista, mesmo sabendo que não há como pagar pelos textos. Temos uma média de 30 mil acessos por mês e esse público, mesmo fluido, garantiu um espaço e um reconhecimento pra revista no panorama da crítica brasileira. E só conseguimos isso porque nos mantivemos firmes aos nossos propósitos, mesmo reconhecendo que os tempos mudam e as pessoas também.
Nos anos 1990, o mundo assistiu uma explosão do cinema iraniano e, na década de 2000, do cinema asiático. Qual será a bola da vez nessa nova década?
Não faço ideia, e isso define algo importante no meu trabalho como crítico: eu sempre espero ser surpreendido. Se eu conseguisse adivinhar, acho que algo estaria fora dos eixos. Mas depois do cinema asiático já teve quem advogasse uma onda do cinema romeno. Hoje em dia, tendo a achar que há cada vez mais pontos de contato entre diretores que vivem e trabalham em lugares muito diferentes, então não sei se esses fenômenos geográficos ainda acontecerão da mesma maneira. Mas isso é no máximo uma leve impressão.
Qual grande filme você indicaria àqueles que passaram a estudar cinema há pouco tempo, que estão dispostos a expandirem o olhar?
Todos os filmes podem ser importantes, então minha recomendação é a de cultivar a vontade e a curiosidade de ver os filmes, quaisquer sejam eles, sem esperar demais deles, a ponto de não permitirem que os filmes possam surpreender. E é claro que isso é utópico, mas acho que é uma utopia produtiva. O diretor mais essencial pra mim é Yasujiro Ozu, mas não acho que ele seja o diretor que melhor explica o que é o cinema. Esse diretor provavelmente seria John Ford. Em ambos os casos, é preciso ver mais do que um ou outro filme, mas sim um conjunto deles. Talvez ali, entre Ozu e Ford, uma imagem de o que é o cinema possa ser desenvolvida.
Leia a crítica de A Árvore da Vida, por Fábio Andrade
Rafael Amaral (21/03/2012)